domingo, 15 de janeiro de 2012

O clube de Conferências

  
    




    Atenção as alterações de tamanho das letras neste blog não foram intencionais, comprovando intrusão de sabotagem na conta, as alterações foram verificadas bem depois da publicação do blog; as alterações de tamanho também foram verificadas em alguns outros blogs de minha autoria
          Atenção  POLÍCIA ESTA CONTA E MEU COMPUTADOR ESTÃO SENDO UTILIZADOS POR BANDIDOS À MINHA REVELIA MEXEM NOS CONTROLES, ALTERAM ARQUIVOS
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DENUNCIE O   FASCISMO BRASILEIRO ATUANDO NAS INSTITUIÇÕES DE ESTADO COMO RIO DE JANEIRO

     (este texto foi revisado em 2016,  qualquer erro tipográfico deve ser creditado a sabotagem de criminosos)

      O Clube de Conferências


                                            Eliane Colchete


 

                                                           Escrito em: Novembro 2003 a fevereiro 2004

                                                                                                


I

        Ele andava sossegadamente, a rua rescendendo a peixe. Pedras tropicais faiscavam, sua cabeça era um deslumbramento. Procurava nada pensar, deixar-se-apenas-ser, mas o ser era o que é e ele o ente-sendo, Eu Sou a fonte do amanhã, e ele imerso no agora, agorinha mesmo, as ruas se ofereciam ao plasma-sol, abertas veias, América, sonho do mundo, tudo nele urgia pelo momento pleno saboreante, ele andava muito macio, os passos dobrados sobre a maleabilidade do calçado ameno.
        As pessoas se entrecruzavam no pequeno-todo formado no espaço da feira. Tudo se apresentava repleto de cores e ele caminhava a esmo, esquecido de pensar, por entre a multidão em movimento. Incorporando-se, em plena fusão de corpos, passos, avanços quase rítmicos, coreográficos.

-          Rômulo!

     A imagem do rosto moreno sorria-lhe frente a frente concentrando o universo inteiro  por um pequeno instante. Os cabelos dela, escuros, sobre os ombros, ondulantes, brilhavam sob o sol e ele voltou ao nível de consciência comum sem transição, sem nem mesmo precisar lembrar, talvez, de que era por ela que se encontrava ali.

- Cristiana! – Sorriu para ela. Sentia-se contudo  algo surpreso, o que não passou despercebido à moça esguia, muito vivaz, que o encarava com prazer.

-  Então? Não esperava me encontrar aqui? – Ela perguntou, ainda sorridente, quase com ironia.

-  Francamente... – iria ele dizer que não mas refreou-se. Na verdade estava ali porque quisera ver o seu ambiente de origem, o habitat de uma espécie. Sabia, pelo que ela lhe havia contado, que os pais de Cristiana eram feirantes, mas não a imaginava mourejando ao lado deles, logo ela, tão fresca, jovem, livre...  Mas não quis confessar-lhe isso agora e apenas comentou que havia, inversamente, vindo justamente para vê-la. Já a moça não parecia tão interessada na resposta e o puxava gentilmente, com muita agilidade, por entre os incansáveis passantes que saturavam o lugar indo e vindo como que eternamente.
        Viu-se então junto a um segmento particularizado, em meio à continuidade incomum das barracas lado a lado enfileiradas que dominavam a rua. Uma profusão vertiginosa de coisas pairava ali, absurdamente quietas em sua explosão estática de formas e tons infindáveis. Havia roupas íntimas penduradas e camisolas de mulher, blusas de homem, shorts de crianças, bolsas e sacolas coloridas, espelhos, brinquedos, utensílios de cozinha, tecidos, bijuterias, bibelôs, até que a série desdobrava-se na vizinhança de uma outra barraca sortida com frutas.

-  Pode ir, mãe. – Cristiana falou, dirigindo-se a uma senhora idosa, alta e muito magra, com um coque por trás da nuca acomodando os cabelos lisos e escuros. A senhora o fitou. Possuía um olhar claro, ainda que seus olhos fossem castanhos. Parecia encara-lo por dentro, o que o fez retroceder algo sobre si mesmo, hesitando. Por fim, Cristiana rompeu o embaraço.

-  Esta é minha mãe, Rômulo. – a senhora estendeu-lhe um sorriso inexplicavelmente jovial.

-   Prazer, Olívia. – ela falou com um movimento de cabeça, como que assentindo. Rômulo procurou ser-lhe agradável o mais que pôde mas dona Olívia logo deixou-os a sós na amplidão súbita que o tomava agora como se o espaço todo lhe fosse entregue, a feira aparecendo-lhe na totalidade como um pequeno item, seu reinado, em meio ao universo infinito.
         Mas Cristiana tornava a concentrar a cena de sua atenção, impondo-se única ao seu olhar, falando, arrumando coisas aparentemente dispostas em ordem puramente arbitrária, para finalmente assentar-se numa cadeira arredondada feita com fios coloridos entrelaçados.

-  A feira requer muito trabalho. Meu pai acorda de madrugada para dar tempo de armar a barraca e arrumar as coisas até a hora de abrir. Às vezes durante o dia ele tem que andar por aí, procurando mercadoria. Minha mãe fica atendendo os fregueses. Quando ela precisa fazer  alguma coisa, eu tomo conta. Hoje tem reunião na escola do Pedrinho, o meu irmão,. Ele está com doze anos, é muito bonitinho, sabe? – Ela sorria-lhe fazendo com o gesto de sentar-se, acomodando-se relaxada na cadeira colorida, com que subitamente a sensação de domínio parecesse agora a Rômulo como o seu contrário e uma fraqueza o invadiu, ele, por um átimo era uma criança e tudo o que queria era estar assentado em uma cadeira feita com fios plásticos multicoloridos e brilhantes.
        Meneou a cabeça  em um esforço voluntário no sentido de livrar-se da sensação indesejada, recobrar ânimo, tornar ao seu ser-homem. Cristiana levantava-se, pois uma dupla de senhoras se apresentava. Cautelosas, com meneios tímidos mas incisivas como se  portassem bordas cortantes, elas serpeavam por entre as roupas dependuradas em seus cabides, ao sol. Um menino fez a mãe desviar a caminhada evasiva por entre os gritos dos feirantes, fascinado por um pião colorido que jazia sobre uma pilha de cobertores axadrezados. Rômulo espreitava a cadeira, com indecisão quanto ao ato de ocupá-la enquanto simultaneamente Cristiana sorria para o menino que contemplava o brinquedo, embevecido, e principiava a entabular conversa com as senhoras que no entanto estavam longe de demonstrar qualquer boa vontade parecendo antes algo sorrateiras conquanto seus ombros grossos descaídos ondulassem como que farejando. Rômulo sentiu o estômago retroceder, queria-se repentinamente longe da feira e meditava nisso estranhamente como se uma obstinação o houvesse levado a ficar ali preso à idéia de ir-se embora, o olhar descansando casual sobre um xale cor lilás.

- Bom dia, senhora, mas que bom gosto, pois justamente este vestido combina muito bem com o seu manequim... – o menino estendia a mão para o pião colorido, o sol dardejava-se por entre as listras fulgurantes, a mãe estava por interceptar-lhe o gesto mas Cristiana pousou o objeto na mão dele com um meneio ágil e tão cheio de naturalidade que o sorriso que se seguiu iluminando em cheio o rostinho do garoto semelhava uma pantomina executada sob o controle de um mestre austero.
            Rômulo se pegou afastando-se insensivelmente e voltou então o olhar para Cristiana que acenou sem pressa nem cuidado, como se meramente continuasse a executar um  papel e soubesse todos os pormenores da ação. Caminhando, Rômulo buscou novamente livrar-se da sensação de desamparo mesclada agora com aquele sentimento novo de ser um objeto em meio a um conjunto de itens, ações e falas, todas as coisas prévias, o mundo dado de antemão e ele um momento computável do sistema-espaço, mas porque é que havia se processado para vir, e o que é que havia no olhar claro de dona Olívia?
           Andando sempre, sentindo-se incerto, esforçou-se para enfrentar o que dentro dele queria se impor, o pensamento do contraste entre a Cristiana de hoje, uma guria no meio das bugigangas e seus trejeitos de vendedora que o enojavam – o brilho interesseiro no olhar, a malícia no jogo da fala doce, tudo predisposto ao logro, ao engano – e a Cristiana de ontem, com quem estivera à noite na beira do rio conversando e ela lhe dissera:

-   Minha religião é o mundo, essa aragem, as coisas e as pessoas que se entrelaçam na paisagem do instante...

           Estava agora no sentido do canal, subindo a avenida. Começou a achar tudo engraçado. Rindo consigo mesmo meneou a cabeça, a barba ligeira ensombreando o rosto moreno. Era isso, Cristiana, apenas uma guria, uma garota com sua saia indiana, suas camisetas de malha, seu cabelo no ombro, suas sandálias de couro. Como é que ele havia suposto ser ela um arauto da sabedoria, alguém que lhe traria novamente a ânsia da estrada, a febre do devaneio... A imagem de Patrício pairou por cima da visão das coisas, atravessando imaterialmente a entrada do botequim. Rômulo não quis pensar nele agora, o encontro com Cristiana havia lhe fechado alguma coisa por dentro e sentia-se seco, cético, forte, apenas o ser terra a terra do momento presente.
         Afastando a imagem da memória pôs-se a inspecionar o estoque de bebidas nos fundos da loja, voltando-se em seguida para ocupar seu lugar de proprietário no balcão enquanto o Bento posava sua proverbial posição de guarda a um canto perto da porta e Joaquinzinho, o rapazote branquelo e franzino que servia as mesas, apressava-se no afã de mostrar-se útil, munindo-se de um pedaço de pano para esfregar a fórmica verde que as revestia.
         No entanto, mais tarde, o Otavio surgiu, sabe-se lá de onde, o rosto afogueado, querendo uma dose de boa pinga, entornando devagar, maneiroso, escorregadio, como costumava ser o jeito dele. Rômulo observa-o enquanto o copo transparente descreve um arco no espaço. A silhueta de Otavio recorta-se contra a paisagem para lá das portas abertas do bar. Feitoria estava crescendo. As lojinhas proliferavam enfeitando as ruelas bem traçadas do centro. Agora as nuvens bordejavam árvores, forçando por ocupar o espaço dos céus. Rômulo se deixou absorver no jogo do movimento, as nuvens se ampliando, as árvores agitadas pelo vento, as pessoas passando no seu vai e vem incessante. Deu-se conta de uma sensação de sombra, como se subitamente a luz se houvesse cambiado em uma gradação suavemente menor. Mas o que sentia não se traduzia por uma atmosfera aconchegante semelhando mais o floreio de algum vulto rodeando a abertura. Otavio o encarava, pousado o copo vazio sobre o balcão.

-    Hoje é o Lopes. Palavra, meu camarada, coisa original está ali. Quanto mais o ouço mais aprendo. Agora aqui entre nós, tão apenas: o Lopes está ficando velho. Qualquer dia desses se aposenta. E aí, quem há de? A Fabíola tem seu porquê mas é só isso. A Zina, ninguém agüenta para mais de se divertir. O Corrêa, o Bastos? São interessante mas não carream. A gente os ouve uma vez, depois...

       Se Rômulo possuía algum dom quanto a bem aquilatar os pesos e equilíbrios da criatura humana já devia ter se apercebido da peculiaridade saliente no caso de Otavio. Não costumava plantar à toa, não ficava revolvendo a terra, recolhendo folhas soltas, apreciando o brotamento dos frutos. Não. Queria sempre um resultado por trás da intenção. Do mesmo jeito que agora, provavelmente. Que era pois que estava insinuando?
        Após  deitar mais algumas sílabas soltas no ar carregado, Otavio retirou-se, as botas bem talhadas sublinhando-lhe os passos. Rômulo compreendeu que Otavio pretendia prognosticar o declínio do clube de conferências. Mas não lhe estava ainda claro o porquê.
        Hoje, o Lopes, pensou. Logo Rômulo viu chegar o Emanuel, seu porte destacado avançando por entre as mesas que se ocupavam mais e mais de fregueses à medida em que se avizinhava a noite. Contratara-o justamente para poder assistir o Lopes, às terças e quintas, religiosamente, no clube. Deixava o Emanuel cuidando da caixa, o Bento de segurança, Joaquinzinho e mais o Miguelito, que devia chegar a qualquer momento, dando conta do balcão e das mesas. Assim despendia a sua hora de palestra com o Lopes após o que retornava ao bar que a essa altura não parecia capaz de conter tanta gente mas havia a magia do espaço que Rômulo já tantas vezes testemunhara e que não deixava por isso de ainda às vezes o surpreender.
          Pois a magia do espaço era a infinita inclusão e o pequeno salão acolhia a todos, comuns e irmãos na  amplitude da garrafa, do copo, dos pratinho de salgados que entremeavam pactos, projetos, confissões, sonhos, motivos ou apenas o registro do espanto na experiência crua dos homens castigados pelo sol, pelo suor, mas consolados pela inclusão que garantia um companheiro capaz de ouvir e de, aparentemente, compreender.
          Mais tarde, no sobrado pousado por cima do botequim, que lhe servia de lar, Rômulo se arrumava ligeiro para a palestra. Saiu então, andando no ar tranqüilo daquela hora em que Feitoria se debruçava sobre a novela por entre os pratos do jantar. Rômulo lembrou de sua experiência matinal na feira, com Cristiana. Sorriu consigo mesmo a lembrá-la, meneou a cabeça com certo quê zombeteiro. Por causa do seu jeito destro, seu olhar vivo e interessado, sua frase poética “a minha religião é o mundo, essa aragem...” Romulo havia acorrido a ela como um náufrago à terra firme. O vento o envolveu na caminhada, refrescando-lhe os sentidos, aguçando-lhe a lucidez.
           A noite não se mostrava límpida. As nuvens da tarde haviam se avolumado e agora pareciam concentradas como uma chapa sólida sob a abóboda do céu. Rômulo deu-se conta de que o que mais era notável em tudo aquilo não era bem se Cristiana possuía ou não aquela sabedoria que lhe havia inicialmente imputado mas a sede, quase o desespero, com que ele acorrera uma vez tendo julgado que sim. Isso revelava algo sobre si mesmo e Rômulo sabia que era algo importante em relação ao seu caminho, ao como e ao porque do seu momento ser aqui, agora, em Feitoria, caminhando desde o bar até o clube de conferências.
          Anos de estrada, Rômulo podia se lembrar. Rodrigo, o amigo rico do colégio, abrira-lhe os olhos. Músicas, livros, os tempos da semi-delinqüencia, a juventude...

-   A gente comum reproduz uma seqüência do sistema. O banqueiro, o repórter, o lavrador. A liberdade não está na compatibilização do poder aquisitivo entre uns e outros. Claro que isso vem. Virá a era em que o consumo, sendo a lei, não será apenas acessível a todos mas obrigatório. Claro que eu prefiro que os filhos dos operários possam também ter do bom e do melhor. Mas a liberdade, o espírito sem as amarras do preconceito, sem a clausura da superstição, seria possível dentro dos limites da seqüência qualquer, cuja lei prescreve o ser, de antemão?

           Seus modos eram francos, o corpo esguio possuía uma graça toda natural feita com gestos cheios de eloqüência e expressividade. Os olhos azuis, o cabelo louro jogado à vontade ao sabor do vento, a barba freqüentemente por fazer, os dentes muito brancos no sorriso que convidava as pessoas a uma cumplicidade profunda, a uma ternura humana, tudo o que Rodrigo representava posava indelével na memória e Rômulo o tinha, de certo modo, sempre consigo.

-   Conhecer, por exemplo. A gente comum pensa existir uma realidade feita da qual alguns copiaram o modelo em suas mentes e podem então dominá-la. Mas essa realidade dominável, são  justamente os comandos do seu lugar no sistema, uma seqüência simples, no meio da complexidade de todas as seqüências mais suas realizações que totalizam esse sistema, Esse, nenhum outro. O que há de aleatório nisso, de natural, nos quer fazer crer a história. Mas a questão é que há uma aptidão do ser que está ignorado, forcluído, denegado toda vez que emerge. E isso, essa aptidão, é o que deveria ser chamado o conhecer. E deveria ser chamado assim por ser verdadeiramente relacionado à realidade que nunca está pronta. A realidade... O acesso à realidade é a liberdade e o conhecimento é o meio, o meio efetivo... O caminho. A vivência é o lugar do conhecimento para o ser que contempla a eterna novidade do que se passa à sua volta. Quando em meio ao seu assombro ele atinge a essência que passa, a realidade lhe foi acessível, ele se tornou livre, aqui e agora, vivemos isso, eu e você, porque você me compreendeu.

          Então  ficavam em silêncio. Rômulo deixava-se flutuar como se não fosse necessário responder. Freqüentemente estavam sós ou com poucos companheiros. A cidade era grande e eles possuíam uma árvore. Conversavam à sua sombra, desejando um lugar cheio de natureza em estado puro, os campos, as montanhas, as florestas. Rodrigo chegou a um estágio em que aquilo não bastava.

 -   A novidade do agora não tem que ser o correlato da passividade. Nós temos que ir ao encontro. Temos que ver o mundo, descobrir o que somos lá onde não há os esquemas óbvios da recognição rotineira.

            Rômulo viajou com ele. Havia sempre alguém conhecido em uma cidade que conhecia outro alguém em outra cidade e eles usavam o mapa do país como um jogo transcendental cujo correlato fenomênico estaria naquilo mesmo que se tornariam à medida em que prosseguiam. Por vezes, porém, não havia com quem se hospedar e eles ocupavam varandas de casas de veraneio vazios, à noite, o dia inteiro vagando, apreciando os estratos recortados da paisagem.
          Duas coisas ocorreram  paralelas, o que mudou tudo aquilo: conheceram Patrick em Santana e Rodrigo se cansou das andanças resolvendo tentar uma bolsa de estudos na Europa.
           Patrick estava num bar quando, ao cair da tarde, Rodrigo e Rômulo se sentaram próximos dele, casualmente. Patrick perguntou se não eram hóspedes de Lourenço e conforme a resposta afirmativa principiou uma conversa ponderada, muito tranqüilo mas surpreendente, especialmente na visão de Rômulo.

-   O comum das coisas nos pega de jeito, vocês vêem, a gente pensa que sabe tudo sobre elas e quando damos por conta tudo tem seu lado oculto.

                Patrick prosseguia então com seu fantástico elaborado, suas receitas medievais de poções para curar a enxaqueca, para se fazer amar, para curar a calvície, a insônia, para ver e ouvir coisas longínquas, seus casos complicados de gente que sabia estar em vários lugares ao mesmo tempo, ou voar, ou tomar formas de animais...

- Nós temos uma conexão com o planeta em que vivemos, mas temos também uma ligação com o universo. Se aprendemos com o que presenciamos através da nossa conexão com o planeta, também podemos ter acesso à informação do que está para lá – e apontava o horizonte – lá, não sabemos até onde...

               Rodrigo desdenhava do que dizia não passar de superstição, assim como costumava fazer com o que ele chamava de “cismas religiosos”. Rômulo não levava inteiramente a sério o que Patrick falava mas o que o surpreendia era a maneira ponderada com que ele conduzia as coisas, não somente no plano das idéias mas em todo o seu modo de viver. Patrick morava em uma casa muito simples. Mesmo assim convidou os dois amigos para ficar com ele por um tempo. Rodrigo recusou. Rômulo aceitou. Resolvia-se assim de certo modo o dilema a que estavam expostos desde que nascera em Rodrigo a idéia de estudar na Europa, pois havia uma hesitação quanto ao que Rômulo deveria fazer em seguida: candidatar-se também a uma bolsa no estrangeiro? Voltar à casa dos pais? Nada lhe parecia satisfatório após tantas experiências em comum. No entanto o desacordo frente a Patrick formou-se como um corolário do que havia se afirmado já a partir do desejo de Rodrigo por uma temporada em outro país. Assim Rômulo ficou alguns meses na casa de Patrick até que este, já com idade avançada, adoeceu.
           Rômulo havia se afeiçoado a ele. Patrick pescava no riachinho que banhava o lugarejo, era amigo das pessoas, possuía horizontes próprios, um mundo oculto feito de observações e leituras, visão ampla, coração bondoso. Quando ele adoeceu, Rômulo sentiu o desamparo da sua própria juventude, da sua necessidade de compreensão, do seu descompromisso. Não possuía praticamente nada, ninguém. Os pais não se importavam muito com ele. Haviam se fixado mais no irmão mais moço que já possuía profissão definida, mulher e filhos. Os pais só tinham olhos para os netos. Rômulo era como um estrangeiro em seu próprio país. Mas não se interessava por engajar-se num tipo de empresa como a que seduzira Rodrigo.
         As mulheres tampouco o prendiam. Eram casos passageiros, amizades que traziam a satisfação física, e para que mais, perguntava-se. O inconformismo de Rodrigo quanto aos papéis sociais havia se implantado nele de um modo peculiar pois o próprio Rodrigo lidava com suas idéias de um modo pragmático. Já Rômulo se defendia de qualquer mudança em seu ponto de vista inicial. Por ele viveria com Patrick, que nada lhe exigia, que era também um ser indefinido, apenas vagando ao redor do lugarejo, trajetos sem fim, à beira do rio, vivendo ao sabor do instante, sem pressa nem objetivo, uma vida ao nível do homem livre que Rômulo desejava ser.
            No entanto, agora que Patrick adoecera, Rômulo parecia não ter escolha. Voltar para a casa dos pais e tentar encontrar um meio de vida, uma profissão, parecia ser intolerável mas irrecusável. Porém Patrick certa tarde, lhe dissera, os olhos brilhando de febre:

-   Vá para Feitoria. Eu tenho lá um terreno, bem localizado, no centro da cidade, com um jeitinho você transforma aquilo num estabelecimento, abra um bar, se estabeleça por lá. Feitoria é como aqui. Tranqüilo, cheio de árvores, tem um rio... Você, com seu ganha-pão, não se apoquenta.

              Rômulo efetivamente estabeleceu-se em Feitoria. Algum tempo depois surgiu Leda. Filha do tabelião do cartório local, Leda era uma moça alta, os cabelos claros, muito simpática, possuindo uma doçura, um calor humano que lhe fazia lembrar Rodrigo. Mas Leda era quase que o oposto de Rodrigo. Para ela tudo já vinha dotado de  um “modo de fazer” que garantia o acerto – se houvesse um erro bastava corrigir o procedimento com base na receita previamente estabelecida. Rômulo apreciava sua companhia, ainda assim. Ela era como um bálsamo a suavizar a sua ânsia. Pois inicialmente estabelecido em Feitoria  as cenas da estrada, a pura amplidão, as palavras de Rodrigo, a realidade mesma com seu correlato mais essencial, a liberdade, enxameavam como visões impossíveis de conjurar.
       Rômulo sabia que era tarde demais, que o tempo havia escoado os limites do que lhe fora dado experimentar e agora tudo se traduzia no seu cotidiano que ao menos lhe parecia ter logrado manter puro. Mas puro do quê? Da seqüência, como diria Rodrigo. Ele, Rômulo, era real. Não se consumia por superstições, não se envolvia com maquinações, não lhe interessavam os desvios alheios.
       Procurava não obstante manter em comum o que havia nele de humano. Leda afirmara que ele era um “abnegado”. No íntimo Rômulo às vezes ria de si mesmo. Tornara-se  o  monge de  um credo ainda por codificar. Mas de tempos em tempos as recordações do que pudera ser irrompiam não mais como simples visões e sim como uma ânsia irrestrita por voltar, por estar novamente na estrada com o Rodrigo daquele tempo, ou na beira do rio com Patrick. Mas Patrick se fora para sempre, com seus sessenta e tantos anos e Rodrigo, pelo que sabia, estava se especializando em Literatura na Bélgica. Teria ele mudado seu modo de ver ou apenas adaptado uma nova estratégia ao seu  singular inconformismo? Fosse como fosse a resposta era pessoal. Jamais se transferiria ao que estava ao alcance de Rômulo.
           No entanto o tempo, como se sabe, não se deterá. O relacionamento com Leda evoluíra até porque ela era mais determinada do que as outras com quem Rômulo  se entretinha, de vez em quando, e se resolvera a tê-lo. Leda o levara ao Clube de Conferências e tudo parecia contribuir para que ele simplesmente esquecesse o passado. Até que encontrara Cristiana.
  
        
  II -
            Neste momento, dobrando a esquina e quase alcançando o imponente edifício no qual se costumava ministrar as palestras, Rômulo sentiu alguém pousar levemente a mão em seus ombros. Voltou-se instintivamente. Era o Doido.

-    Como é que é camaradinha, tudo em cima?

              Rômulo sorriu, relaxando, ao reconhecê-lo. Doido era alto, gordo, os cabelos pretos rebeldes, aparados sobre a testa, um sorriso vasto e simpático dirigido a Rômulo através da noite muito escura.  Apesar da estatura vistosa havia algo nele que transparecia como fragilidade, inocência ou como se sempre houvesse algo a recear. Rômulo porém sentia o desamparo oculto no semblante do outro como alguma coisa que estranhamente ameaçava a si mesmo. Por isso, frente ao Doido, costumava recuar um pouco, pôr-se na defensiva, por assim dizer. O Doido... Porque o povo havia posto esse apelido nele?

- Tudo bem, Doido, - Rômulo usava o mesmo termo, como toda a gente, e o rapaz tomava aquilo por natural, ao menos aparentemente. Quanto a Rômulo, uma vez que ele mesmo havia se apresentado assim, hesitava quanto a indagar sobre como ele realmente se chamava. Logo optou por não o fazer dado a familiaridade geral do apelido.
             Semelhando retomar a caminhada, Rômulo sentiu novamente as mãos em seus ombros. Doido estacara. Olhava-o com intensidade.

-   Posso falar com você? -  as palavras eram inusuais. Pareciam conter algo a mais do que o estritamente esperado nas circunstâncias  e Rômulo encarou-o com certa dúvida.

-    Claro. – respondeu, ainda sem saber se era isso mesmo a que se dispunha.

-     Senta comigo um pouco? – ele apontava os bancos da pracinha próxima ao clube. Rômulo anuiu, silencioso. A noite estava à beira de uma tempestade. O vento ora rodopiava, ora passava rente, reto, imperioso. Não havia mais ninguém ocupando os outros bancos e os passantes demonstravam certa pressa, como que tocados pelo ar carregado.

-    Desculpe, mas eu preciso conversar, entende? – Doido parecia nervoso agora, como que acalmando-se com o som da própria voz ou com o fato mesmo de estar sentado com alguém a ouvir. – Eu tenho algo a dizer às pessoas, é como uma missão, e às vezes eu sinto como se a humanidade estivesse acabando. Sim, porque a missão que eu tenho é falar aos seres humanos e às vezes é tão difícil encontrar alguém que me ouça, então eu penso que todos são... monstros, máquinas, invasores de corpos. – o Doido ria agora, procurando descontrair-se e talvez buscando um meio termo que pudesse aliciar Rômulo.

-    Você assistiu àquele filme? – Ele tragou, longamente. Sua pergunta ressoou na noite. Rômulo pensou que seria bom fugir. Doido prosseguiu.

-     O espírito, veja, preciso falar sobre o espírito. O Lopes, por exemplo, ele está sempre falando sobre o espírito, sobre a evidência... Mas parece-me que o Lopes nada sabe, ele apenas decorou as falas nos livros. Aliás ninguém sabe, você não sabe. Diga-me, você poderia seguramente afirmar que sabe o que é o espírito?

         Rômulo suspirou. A manhã com Cristiana havia tumultuado suas emoções apesar de aparentemente nada ter acontecido. Havia procurado concentrar-se apenas no que lhe estava à mão, durante todo o dia, a fim de reapoderar-se daquela calmaria apática em que havia se refugiado desde que chegara a Feitoria ou ao menos desde que se resolvera a superar a ânsia por aquilo que vivera na estrada com Patrick e Rodrigo. Agora o Doido lhe fizera sentar na nascente de uma tempestade e lhe perguntava, exaltado, o que era o espírito.
       Por um  momento considerou a face do outro. Contaria a ele que o espírito estava nas fogueiras noturnas improvisadas ao Deus dará no meio das paragens mais loucas? Ou que o espírito costumava pousar sobre as águas mansas do riachinho quando -e somente então- Patrick estava ali, pescando?

-   Quando se sabe não se fala. – foi porém o que lhe ocorreu pronunciar. Queria apenas levantar-se e ir-se embora. Leda esperava-o no clube, Lopes devia estar iniciando a palestra.

-  Pois não é isso! – prontificou-se o Doido a exclamar, peremptório – Seja o que for que você disser ou não disser, não é isso!

           Pingos de chuva, muito finos e esparsos, já se faziam sentir. No entanto o Doido projetava a face frente a Rômulo, encarando-o.

-   Eu vejo em seu semblante, em todo o seu modo de sentar, de me olhar, eu vejo que você não sabe. – ele principiou a falar rapidamente: - Para você o espírito é algo em movimento, redondo, rodando, desenvolvendo-se sem cessar, algo que é como uma vontade ou propósito abarcando a infinitude dos seres em uma ação combinada, contínua. Pois o espírito na verdade está imóvel. É como um quadro gigantesco com uma única cena. Você o imagina fluindo, mudando, porque é assim que você imagina o tempo. Mas eu sei que o tempo é ilusão. Se você estivesse diante de um quadro muito grande você abarcaria as figuras nele representadas de uma vez só? Não. O seu olhar criaria um caminho, uma ordem que uniria as figuras em sua visão. Assim é o tempo, tudo que se move. São detalhes do todo já definitivamente feito, completo. Sendo assim, você me perguntaria, porque é que simplesmente não fazemos nada, já que tudo está dado de antemão? Pois experimente. Ninguém conseguiria absolutamente nada fazer, e por quê? Porque todas as palavras, todos os gestos, os mais comezinhos e os mais momentosos são detalhes no meio do grande todo, o espírito, que fala com a sua voz, a minha voz, todas as vozes, que é todos os movimentos que na verdade não são movimentos, são...

        Rômulo pousou as mãos nos ombros do Doido.

-  São detalhes do espírito já feito e acabado. Certo, meu amigo, muito obrigado por me dizer isso, eu pensarei seriamente a respeito.
        O Doido fitou-o, sentado, enquanto Rômulo já se pusera de pé. Naquela posição destacava-se a impressão do seu desamparo. Parecia pequeno, infantil, não obstante o talhe volumoso. Piscou os olhos, um tanto surpreso. Mas logo aquiesceu como que aceitando o resultado de um lance limite ao qual só lhe restava presenciar.
       Rômulo hesitou. Algo naquela silenciosa aceitação levava a crer que para o Doido havia mais alguma coisa envolvida, as coisas possuiriam aos seus olhos, talvez, um valor simbólico e Rômulo não desejava causar-lhe mal.

-   Vamos, a palestra já deve ter começado. – convidou, com um sorriso, procurando ser gentil. Doido levantou-se com gestos de autômato e brandamente o seguiu.

             Ladeado pelo Doido, adentrou a sala. O suave impacto do vento o fez olhar para cima, irrefletidamente, de onde vinha  o fluxo ameno da aragem. Registrou, quase sem dar por isso, o semblante aberto do ventilador de teto semelhando uma imobilidade falsa. Sua atenção prosseguiu porém naquilo em que estava empenhada desde que entrara e caminhou a passos discretos, contidos, silenciosos, em busca de uma cadeira vazia. Presumia que o colega estivesse fazendo o mesmo. Ao encontrar o que procurava voltou-se instintivamente com um ar protetor a ver se o outro lograra acomodar-se. No entanto só divisou corpos assentados quietamente em seus lugares
       Hesitou um instante talvez menor que o pensável entre a preocupação com o outro e a necessidade imperiosa de não chamar a atenção  sobre si mesmo e assentar-se também, imediatamente. Logo o Doido surgiu no vão da porta carregando uma cadeira e dividindo sua atenção entre os movimentos que fazia, no intuito de pousar o assento a um canto e as palavras esparsamente captadas do mestre. Gradualmente estas últimas cresceram no campo perceptivo e se impuseram todo-poderosas reinando sobre o silêncio opaco.

          “ A vespa e a orquídea... Poderíamos afirmar que há aí uma captura do desejo? Mas não seria mais como uma liberação? A liberação do jugo reprodutivo pela sexualidade pura?”

            O professor pairava agora seu olhar inquiridor sobre todos como se provocasse um comentário. A platéia mesmerizada não ousava romper o silêncio. Rômulo pousou a visão sobre os outros. Lá estavam Romeo e Otavio, o primeiro com um ar incisivo e entusiástico, o segundo ostentando um meio sorriso algo irônico, pretensamente sutil. Todos pareciam levemente tocados pela onda polêmica que Lopes, o palestrante, havia suscitado.
          Quanto ao Doido, porém, as coisas se passavam diferentemente. Parecia a ponto de saltar do assento ou alguém a quem se havia  mostrado o impossível. Acostumados como estavam a seus trejeitos exagerados, as pessoas não lhe davam atenção. Alguém elevou a voz: “Mas essa liberação não acarreta um decréscimo quanto à necessidade de sobrevivência da espécie? E sendo assim ela não se incompatibiliza com o caráter de norma válida para, ao menos metaforicamente, a ação?”
          Nesse momento a silhueta de Leda desenhou-se na porta sinalizando com gestos expressivos que o esperava no saguão do Clube. Ao que parecia vexava-se de entrar com tanto atraso. Rômulo desejou que ela não fosse tão conscienciosa mas Leda já não mais se encontrava à vista.

           “- O essencial é que seja única, insubstituível. A ação expressiva não se mede por sua validez ou normatividade mas por sua singularidade. A questão da vida não é a necessidade mas a possibilidade.”

             Então a transição que sempre o surpreendia e fascinava se superpôs. Lopes encerrava a palestra. As pessoas presas ao encantamento das palavras subitamente se aperceberam de que estavam livres. Levantavam-se transformando o silêncio e a imobilidade em um burburinho cheio de movimento.
              Rômulo levantou-se, cumprimentou Romeo e Otávio, ambos formando um grupinho próximo a Lopes que atendia algumas pessoas que dele se acercavam para trocar algumas palavras. Saudando-o com um sorriso, Rômulo deixou a sala, para encontrar com Leda no saguão. Mas Otavio o seguiu e interpelou no corredor:

-          Preciso falar com você, é sobre o Romeo. – Anunciou com voz penetrante, algo dura.

-          O que há? – Rômulo perguntou.

-          Largou a mulher. Está com uma outra!

-          O quê? – Rômulo estacou. Procurava orientar-se, em meio aos outros que passavam por eles, à vontade de chegar logo ao saguão, à leve contrariedade da presença de Otavio que o constrangia a pensar em Romeo.

-          Mas... Romeo não é casado.

-          Não, estou falando da noiva! Deixou a noiva, está com outra mulher. – isso parecia tão importante para Otavio que Rômulo não sabia bem como avaliar-lhe as palavras.

-          E daí, qual o problema? Ela estava grávida? Tentou suicídio? Algo no gênero?

               Otávio meneou a cabeça.

-          O pai dela é do partido. Contávamos com o Romeo para a eleição. Quero ver como é que vão ficar as coisas agora.

-          Que coisas?

-          Tudo! O Clube, por exemplo. Sabe que o partido está mais é querendo acabar com o Clube? Não suportam o Lopes! Com o Romeo na prefeitura poderíamos suportar a pressão. Uma benesse por outra: a prefeitura com credibilidade, gente jovem, formada. Em troca conservaríamos as Conferências. Agora...

               Rômulo não sabia como fazer que Otavio entendesse que ele não sabia ao certo do que o outro estava falando, ainda que tudo parecesse muito claro. Otavio era filho do fazendeiro mais respeitado – e temido – da pequena Feitoria. Freqüentava ocasionalmente o bar de Rômulo e trocavam idéias, como conhecidos. Mas agora falava-lhe de coisas como aquelas, arranjos políticos envolvendo a vida particular das pessoas. Que significava aquela mudança repentina? Ele abaixou o tom de voz:

-   Apareça  lá em casa. Sábado, às oito. Vai haver uma reunião importante, você tem que estar presente.

                   Rômulo ia responder alguma coisa mas Otavio apenas o olhou significativamente e pôs-se a caminho.

-          Oi, bem. Desculpe o atraso.

             Leda sorria-lhe. Impressionado com a atitude de Otavio, havia atravessado a distância do corredor ao saguão sem pensar. Ela o beijou. Rômulo apenas correspondeu. Não sabia ao certo se apreciava o jeito com que Leda o tratava, assumindo-o como algo seu sem ter para isso solicitado qualquer permissão. Contudo a autoconfiança dela o fazia sentir amparado, confortável. Assim deixava-se levar.

-          Tudo bem. Mas podia ter entrado.

-          Eu sei. Não quis atrapalhar.

            Estavam sentados em um dos sofás que guarneciam o saguão do  Clube. Leda tinha planos para o jantar. No restaurante, após a sobremesa, enquanto esperavam o café, ela indagou com ar casual:

-          Então, vai ao Otávio, no sábado?

         Rômulo encarou-a, o coração palpitando, sem saber porquê. Certamente a pergunta o surpreendera mas sua própria reação emocional pareceu-lhe despropositada. Tentando  recuperar o autocontrole, retrucou:

-          Como sabe disso?

-          Disso, o quê? – ela acendeu um cigarro com um ar tão natural que Rômulo sentiu-se relaxar.

-          Do encontro no Otávio, sábado.

-          Encontro? – ela sorriu como se a linguagem dele lhe parecesse apenas algo esquisita ou inusual. – como assim? Trata-se de um  jantar, que eu saiba. Todos os homens importantes vão estar lá. Meu pai irá, claro. Por isso achei que você deveria ter sido convidado também.

           Algo no tom de sua voz tornou a alarmá-lo.

-          Pois eu fico pensando por que o Otavio me convidou. Não sou importante aqui.

               Leda nada comentou, mantendo-se reservada, quase circunspecta.

-          Você tem algo a ver com isso? Foi você quem sugeriu que ele me convidasse?

                Ela levantou os olhos mergulhados na xícara de café que o garçom lhe trouxera.

-          Sim. – declarou, simplesmente. – Que é que tem? Já é tempo de você se inteirar das coisas, assumir seu lugar.

               Rômulo compreendeu com toda clareza que a expressão que Leda usara “seu lugar” significava na realidade “nosso compromisso”. Silenciosamente suportou a luta desencadeada em seu íntimo. Queria gritar e esbravejar. Ela estava sendo invasiva, não tinha o direito de usá-lo como um objeto a que se dera unilateralmente o domínio da posse. Era mimada, arrogante, intrometida. Mas tudo se compunha ao seu redor. O ruído das águas movimentando-se na fonte cristalina que embelezava os jardins do restaurante. As luzes cálidas, douradas e tênues. O ruído amistoso e sóbrio da conversa das pessoas elegantes nas outras mesas. A chuva havia amainado e a noite se revelava densa, caudalosa, cheia de segredos e promessas.
               As razões dela, ainda que tácitas, o permeavam. Ela o estava favorecendo, na realidade. Quantos outros não desejariam estar ali? Leda era jovem, bela, tinha fortuna e posição. Estava colocando tudo isso ao seu favor. Como poderia ele ignorá-lo?
           Ela sorriu-lhe, encantadora. Os cabelos castanhos claros, lisos, à volta do rosto macio e oval sobressaíam por sobre o costume branco que usava. Parecia tão leve e acolhedora. Era como se desenhasse um futuro feliz, risonho e confiável. Rômulo aquiesceu.
   

III

                  Mas ao sair da casa de Otavio, à noite de sábado, Rômulo semelhava um ser que se houvera transmutado em algum outro. Como era possível?
                  Sentara-se à mesa junto a um magistrado e um proprietário de estabelecimento de ensino. Falavam amenidades. As luzes eram quase acolhedoras. O pai de Otavio, o senhor Saulo, ostentava uma face quadrada, sobrancelhas muito grossas, cabelos grisalhos. Trajava-se bem. Todos os homens usavam terno. As mulheres um tanto excessivamente bordadas, suas rendas e cores misturando-se ao universo de sons, palavras, ruídos secos, risos. Rômulo sentia-se estranho, não fazia  parte da espécie, não. Mas era um homem atraente, as mulheres o rodeavam. Otavio continuava gentil. Agarrando-se a seu antebraço, Leda  parecia exibir uma mensagem única de  propriedade exclusiva e ele deixava-se estar em meio ao mundo novo. Porém, depois do jantar, quando após uma pausa alegre, alguns foram solicitados a reunir-se em uma sala, tudo se transformou incrivelmente.
             Sentaram-se a uma mesa ampla, com pequenas garrafas de água mineral, blocos de notas, canetas e cinzeiros espalhados. As pessoas falavam por vez mas a cada  pronunciamento os demais interferiam, participantes. E o teor do que diziam era revoltante. Uma mulher iniciou uma espécie de relatório. Eram pessoas impetrando mandatos de segurança contra manipulação de cargos públicos, contra má administração do sistema tributário, havendo casos de pequenos proprietários aos quais se cobravam fortunas mensais por impostos ou contas comezinhas como água e luz, mandatos contra pessoas ligadas ao governo do Senhor Saulo, acusadas de assassinatos políticos, contra discriminação de pessoas no acesso a serviços na rede pública, nas áreas de saúde e educação ou no trato cotidiano de instituições públicas. Mas o que mais o surpreendeu era que a mulher comentava casos concretos com a intenção evidente de mostrar como “sabia tratar com essa gentalha”, isto é, como tais processos nunca seriam investigados. Sua fala resumia-se pois a uma espécie de prestação de contas através do que eximia os outros ali presentes de sua responsabilidade óbvia em todos aqueles eventos.
            O  Senhor Saulo assentiu. Algo nele parecia apenas condescender, como se considerasse o palavrório supérfluo. No entanto parabenizou-a ainda que com certa reserva. Seguiu-se a fala de um homem cuja tarefa, Rômulo inferiu, resumia-se na distribuição de cargos. Houve uma pequena discussão. Pelo que Rômulo pôde compreender, a certos cargos garantidos pela manipulação pura e simples de resultados de concursos já efetivados estava havendo uma disputa por alguns lugares ainda por ocupar. O que mais os preocupava era a detenção, por parte de concorrentes políticos, de cargos que era necessário obter para seus correligionários. Procedimentos tortuosos foram propostos e debatidos. Em todo caso Rômulo presenciou o aval da diretoria do hospital público a um Senhor Martins, assim como a do departamento de trânsito ao Senhor Flores. Questões foram arroladas como pauta para uma reunião posterior.
           Então um outro homem, este um tanto idoso, atacou o problema das obras públicas. Havia uma licitação para a construção de um banco. Naturalmente a empreiteira escolhida passava pelo parentesco com um deputado. Pelo modo como o homem falava, Rômulo, um tanto apavorado com tudo aquilo, julgou que ele tratava de uma questão menor. No entanto, os ânimos pareceram exaltar-se. Até o Senhor Saulo pronunciou-se.

-          Não há dúvida que precisamos tirar daí mais recursos.

-          Essa coisiquinha de banco não dá para nada! – comentou explicitamente o deputado, com o que pareceu expressar a opinião geral. Então o Senhor Saulo fez um  gesto com a mão, procurando impor silêncio.

           Rômulo encarou-o naquele meio momento em que todos os rostos voltavam-se para a cabeceira da mesa. Não pareceu-lhe difícil creditar àquele homem o papel central na malta que se agrupava ao seu redor. Sob o impacto da luz crua e branca que o tornava visível, o rosto quadrado, os óculos de aro grosso sob o  qual transbordavam as sobrancelhas  peludas, o terno cinza acentuando as linhas das costas algo descaídas, tudo fazia-lhe o catalisador ideal de todas aquelas reações escusas tratadas assim com tanta naturalidade por pessoas que concentravam nas mãos o poder público e a fachada dos nomes mais respeitáveis. Rômulo sentiu um impacto no estômago. Tudo na cidade era podre.

-   Esse assunto desemboca em outro. É natural que o orçamento encontre uma das suas fontes nas obras públicas. Mas as obras públicas se pontuam com as eleições. Ou são o legado da administração a reeleger-se ou são o trunfo do projeto da administração a se lançar. No  nosso caso já demos por encerrado o consenso em torno do desgaste dos nomes do exercício atual. Eu já me reelegi três vezes. A oposição teria farta munição se não renovássemos os quadros. Por outro lado a substância não se altera. Somos uma equipe coesa, solidária.

            Todos concordaram aparentemente mas o próprio ar da sala exsudava à expectativa. O Senhor Saulo ampliou intencionalmente os intervalos entre as palavras. Parecia jogar com o suspense.

-    Não obstante, o meu filho Otavio apresentou um quadro alternativo bastante promissor. Mas parece que se tornou inviável, estou certo?

             Houve um frenesi de constrangimento. Otavio se apressou a retrucar.

-          Sim. Não se pode negar. Mas as conseqüências não tardarão. – falou, olhando com um acento decidido, como que desculpando-se e garantindo  o acerto de contas, para um homem barbudo, no outro lado da mesa. Mais tarde Rômulo soube tratar-se do pai da ex-noiva de Romeo. A referência a ele não se resumia à questão pessoal. Como figura chave do partido conservador que representava o governo era uma  peça fundamental na problemática ora em apreço. Após assim ameaçar quem sabe a Romeo, quem sabe a quem mais, Otavio calou-se. O pai prosseguiu.

-          Nesse caso, a chapa, a meu ver, poderá ser montada conforme o que já havíamos mais ou menos combinado anteriormente, estou certo?

                      Um alívio indescritível percorreu o ambiente. Os traços finos de um homem idoso sobrepuseram-se calidamente aos demais.

       -     O Senhor  Manoel encabeçará a chapa.

                        A voz do Senhor Saulo soou como que em off. O rosto muito alvo de  Manoel pairava sobre todos. Seus olhos claros, pequenos, brilhavam, os bigodes brancos muito aparados retraçavam o caminho de um meio sorriso elegante e discreto. Todo ele recendia a um antigo mundo aristocrático. Soaram aplausos.

        -      Agradeço a todos. Obrigado.

                         Sua voz ressoou, cultivada, sóbria. Os outros se esforçavam por granjear sua simpatia para mais do que os simples vínculos da reunião. Mas era demasiado evidente que ele não ultrapassaria jamais o âmbito do seu papel de marionete nas mãos do pai de Otávio.

         -     Assim, isso mesmo! – incitava este – como é bonito ver o quanto somos unidos... Não obstante, temos que prosseguir com essa questão do projeto, da obra... Temos que resolver isso hoje, de algum  modo.

                            Olhava em torno, buscando sugestões. Otávio adiantou-se.

         -    Eu tenho a solução.

                            Os olhares que se voltaram para ele pareceram de certo modo ambíguos. Havia uma certa tensão. Otavio representaria talvez o “novo” contra o “velho” personificado por Manoel, e uma vez que a inviabilidade do projeto “novo” configurava-se pela “traição” de Romeo, protegido de Otavio, ouvir soar agora a sua voz, no momento mesmo da oficialização da chapa que lhe estava antagônica, suscitava uma  certa apreensão. Estaria havendo alguma divisão mais séria? Não estaria ele deste modo, pronunciando-se assim, opondo-se ao resultado? Afinal,  “novo” e “velho” naquele caso eram apenas as possíveis faces de uma mesma moeda. Ou não?



-    Nós tínhamos efetivamente um projeto como este que está sendo requerido agora. Não vejo porque não aproveita-lo como carro chefe na campanha da chapa oficial.

           Sorrisos afloraram nos semblantes mudos à volta da mesa. Alguns bebericavam a água mineral, satisfeitos. Era isso, então, uma generosidade, Otávio prontificava-se a colaborar. O Senhor Saulo exibiu uma expressão compreensiva e aprovadora. No  íntimo aquilo muito o agradava. Teria gostado de indicar uma chapa dos “novos”. Teria sido de sua vontade que o representante da chapa fosse o seu próprio filho. Mas sabia que naquele momento tal atitude não seria producente.
           A oposição crescia. Não tanto ali, em Feitoria, onde ele e o partido mantinham a situação sob controle. Mas no resto do país, e isso era perigoso. Convinha não subestimar demasiado o inimigo. Assim o próprio Otavio indicara Romeo. O Senhor Saulo não podia entender como um homem renunciava a uma carreira brilhante apenas por causa de um par de pernas qualquer  quando os havia sempre às dúzias, em qualquer mercado. No entanto isso era  um fato. Olhou de soslaio o Donato Pascoal, membro  do partido cuja filha fora  abandonada na véspera  do casamento. Parecia estar convivendo bem com a tragédia. Otávio prosseguia:

-     O Clube de Conferências é a solução! Transformaremos o espaço! Será um Shopping da Cultura em pleno centro da cidade!

          Seu filho panfletava uma idéia à vista de todos e isso o embevecia, o lisongeava. Concordou, prontamente.

-          É uma grande idéia!

-          Não querendo suscitar contendas – pigarreou discretamente o Manoel Augusto – Há um detalhe. O Clube de Conferências, isso está expressamente determinado na ata  nº 87 da minha preliminar de campanha, deverá ser fechado, sem apelação. Particularmente o professor Lopes deve ser impedido de continuar exercendo a profissão em Feitoria.

                 Levantou os ombros, conclusivo. O Senhor Saulo compreendeu de imediato o sentido daquela fala. A brecha estava aberta pelo tempo, a impossibilidade de lançar uma chapa com o próprio nome ou com o de Otávio estava agora sendo explorada por aqueles que, sem  necessariamente romper os elos com o partido e com ele mesmo, cavavam uma oportunidade para ocupar mais espaço. Naturalmente era uma expectativa geral, quase irracional, compartilhada mesmo por aqueles para quem tudo aquilo não faria afinal diferença alguma. Mas foi Otávio quem respondeu:

-    Não haverá problema algum. O Clube de Conferências será inteiramente transformado. Assim não haverá impopularidade na decisão do governo de fechá-lo. A obra será soberba, magnífica, encherá os olhos da população. E naturalmente faturaremos milhões com ela. A propósito, já há contatos estabelecidos com empreiteiras internacionais,  evidentemente não há possibilidade de cobrir a proposta com os recursos disponíveis em nível estritamente local. – nisso Otávio mirou de viés, como que justificando-se, o deputado cujo parente costumava assumir as obras do governo.

-    Se aceitarmos a licitação internacional, a margem do faturamento poderá alcançar por volta de ... –  Otávio citou os seus milhões. Era um argumento irretorquível. Manoel  arregalou os olhos, com expressão de intensa avidez. O nome de Lopes foi provisoriamente esquecido. Cuidariam disso mais tarde. A voz de Otavio novamente se fez ouvir em meio ao burburinho gerado pela excitação.

-     Mas em um nível mais imediato quero submeter à apreciação geral a condução de uma tarefa que beneficiará a todos. Trata-se do aproveitamento de uma área no centro, onde funciona o bar de propriedade do meu amigo Rômulo. O lugar deverá ser utilizado como base da campanha. Funcionará como um restaurante, como casa de espetáculos, como ponto de encontro da elite local e da classe emergente, será um núcleo para onde convergirá a atenção do eleitorado que se identificará assim com nossas propostas, inteiramente.

                  Otavio olhou-o de frente. Rômulo enrubesceu sentindo toda a intensidade do outro. As pessoas erguiam um pouco a expressão ao voltarem-se para ele, como que num momento de descoberta de algo que sub-repticiamente os vinha intrigando. Ah, então era isso... Era por isso que aquele desconhecido encontrava-se ali...

                    Rômulo ignorava se devia ou não falar. Mas de qualquer modo estava mudo. Não seria capaz de qualquer gesto. Otávio prosseguia:

-     Naturalmente esta obra, a ser gerida com financiamento concedido pelo Estado, caberá à empreiteira... – sorriu ao pronunciar o nome, agora voltando o rosto simpaticamente na direção do deputado que correspondeu ao aceno também com um sorriso satisfeito.

                      A noite estava fresca.  Rômulo caminhava pelas calçadas, trêmulo. As sombras das casas abruptamente projetadas sob a luz da lua pareciam testemunhas tristes de uma realidade corrompida. Tudo na cidade estava irremediavelmente comprometido e a condição humana lhe parecia um pesadelo.
                   Leda não participara da reunião, ainda que o pai estivesse à mesa ao lado da mulher que relatava os casos, no início. Ela o beijara ostensivamente antes de  Rômulo se encaminhar com os outros à sala de reuniões e lhe dissera que não iria esperá-lo, que se encontrariam depois. Assim ela não estava ali para ampará-lo na sua confusão.
                     Pensando nisso porém, Rômulo achou que era melhor assim. Talvez tudo aquilo fosse natural para ela...  Talvez escarnecesse de seus escrúpulos, de sua ingenuidade... Ou não saberia do que se passava na sala contígua àquela em que se deliciara com os pratos servidos pelos garçons do Senhor Saulo? Quem sabe toda a vida ela estivesse ignorante das condições de sua existência mesma? Quem sabe se ele lhe falasse sobre o que havia presenciado ela se quebraria por dentro? Ou apenas não acreditaria nele?
                     Pensar nela acentuou a sensação de estar à frente com o paradoxo. As casas, as ruas limpas, o que aparentemente protegiam, as famílias, as pessoas comuns, o respeitável público... As falcatruas, as negociatas, as manobras políticas que insinuavam um sentido grotesco na organização insana daquelas vidas à mercê dos outros. O conformismo, a ignorância. E Leda... Seus cabelos lisos, claros, Deus, ela parecia tão boa, tão pura... Mas o que ela era? A filha do tabelião que manipulava os documentos, as anexações indevidas, os compromissos mais escusos...
                    Sentou-se no banco da praça. Não havia vento. Uma fragrância parada o envolveu. Fechou os olhos, tocou as têmporas com a ponta dos dedos. A cabeça latejava, ele desejou um café forte. O bar devia estar tranqüilo, o Emanuel tomando conta da caixa... Mesmo assim sentia-se irresponsável, ali na praça com aquele enjôo no estômago. Claro que já ouvira falar naquelas coisas. Mas não podia supor que era tudo tão... presente. E o bar... Meu Deus, o bar... aquiescera! Sim, não se opusera às propostas de Otávio e agora seu negócio se tornaria uma coisa grande, voraz, incontrolável... Ele também fazia parte da engrenagem, pois não? Ele... Mais uma obra superfaturada do parente do deputado fulano de tal...
                 Dedos cobriram-lhe a visão, um perfume doce se sobrepôs à fragrância mística da noite. Alguém se lhe impunha a brincadeira antiga. Por um pequeno instante não havia problema algum, nem Feitoria, ele era um menino e lhe cobriam os olhos para ele adivinhar. Com as próprias mãos recobriu aquelas que tocavam seu rosto.

-   Cristiana! – Exclamou, com um ímpeto de pura maravilha.

              Ela riu alto e se pôs à sua frente, a saia profusamente estampada balançando no tecido mole. Estava encantadora. Nada tinha a ver com Otávio, com Leda, com o bar, com a reunião... Quase nada com ele-mesmo, aquele que se tornara agora, e ele queria ser outro que não aquele também outro que viera do jantar. Era então um terceiro, insensivelmente  próximo do que fora quando menino, um menino feliz...
              Ela o pegou pela mão fazendo um  gesto com o dedo sobre os lábios. Não, ele nada diria. Apenas deixou-se levar por aquela mão suave que o guiava pela noite como se o semblante ligeiro de Cristiana soubesse a um rito de redenção.  Subiram o canal, caminhando até o rio. Às margens sentaram-se algo embevecidos pela doçura da atmosfera que os envolvia no encontro. Cristiana sorria-lhe, os olhos brilhando através da noite como faróis acesos no seu caminho escuro:

-    Eu li que a energia vem aos saltos, aos pacotes, em pequenas explosões. Não entendi direito mas acho que é isso.

                  Ela declarou, como que para ele ou para o rio ou para a noite. Apenas pronunciou as palavras e quedou-se ali, olhando a imensidão. Depois continuou:

- Se cada impulso de energia fosse um ato de criação, se cada ato de criação fosse um ato consciente, se cada ato consciente possuísse um propósito, se cada ato que possuísse um propósito precisasse ser conferido, quantos de nós no final poderíamos ser aprovados pelo criador, isto é, quantos teríamos sido considerados em conformidade com o propósito a partir do qual ele nos criou?

                 Sua expressão procurou a face dele como que empurrando-lhe suavemente a atenção no sentido dos seus pensamentos.

-     Veja, não há sentido em indagar tal coisa sobre o rio, nem sobre as pedras ou árvores, mas sobre os seres humanos... Jesus condenou a árvore sem frutos. Ela não tinha culpa, não estava na estação certa, como poderia dar frutos? Mas foi condenada, secou. Você compreende o tempo e o julgamento? Eu não. Não entendo isso.

                Silenciou, como se estivesse pensativa ou preocupada. O rosto, que a ele parecia delicioso, permanecia parado e ardente na noite, em meio à escuridão que envolvia agora aquela porção de mundo.
                  Rômulo não conseguia entregar-se ao puro desenrolar da hora. As palavras dela não o penetravam, roçavam na borda e fatiavam o momento mas não devoravam o seu ardor, a ânsia que o estava consumindo por inteiro. Abraçou-a então, e a beijou com voracidade, uma embriaguez estranha o fazia indiferente ao cuidado, ao carinho, à piedade e ele a possuiu com loucura e febre, intensamente. Cristiana semelhava a noite. Absorvia as coisas e os seres mas não se confundia com nada, não se limitava por nada, era apenas uma fonte de amanhã. Não era o agora, o próximo, o instante. Era o remoto, o ainda por vir, o desconhecido. Ele queria alcançála e obtê-la mas ela era inesgotável. E por fim, quando o sol nascesse e o amanhã viesse ela não permaneceria. A noite se transformaria na manhã, a treva se tornaria a luz e as horas de vertigem teriam passado.
                  Ele estaria sossegado e terno mas não seria mais o estranho ser de agora. Seria... O que seria? Solitário vagaria errando sobre a face do mundo. Buscaria um sentido, uma frase solta, um objeto, um sabor, um pequeno gesto. No entanto agora sabia como as coisas eram feitas. A inocência lhe fôra definitivamente roubada e ele desistira enfim de procurá-la no corpo da mulher com quem fazia amor no meio da noite, à margem do rio.
                 Depois ela deixou-se estar em seus braços. Olhavam as estrelas no céu de Feitoria, tão límpido que a noite era como uma cascata de luzes longínquas. Nada havia para dizer. Sentiram que a manhã se aproximava.


     IV
   
         Vinha da casa do Bento. Quanta pobreza havia pelos arredores. Seu carro, pois agora possuía um carro e um apartamento financiados pelo banco da cidade com o aval de Otávio, o benfeitor, chamava a atenção serpeando por entre as ruelas estreitas, estiradas em meio ao mundo como se meramente ali, para sempre, pedaços destacados do tempo, instantes parados de um passado eterno concentrado nas esquinas mortas.
          Quisera acertar com o Bento. O mulato enorme, com ombros impressionantes de tão musculosos, servia-lhe como segurança no bar. Era totalmente analfabeto e, coisa surpreendente, não se interessava por aprender a ler. Dir-se-ia que não se interessava por coisa alguma além da posição perto da porta. Morava com a mãe mais três irmãs, duas ainda crianças, uma já mocinha. Enquanto Rômulo esperava por Bento, sentado no sofá miserável do casebre, uma delas, a menor, postou-se ao seu lado, calada, tímida, com um rosto cheio de sombra, muito morena, os olhos muito escuros.
        Observava-o estreitamente, como se sua presença a incomodasse, ou se o estivesse guardando assim como o Bento à porta do bar. Uma outra apareceu, com o jeito oposto. Toda risonha, parecia provocá-lo oferecendo balas que conservava em um saco lambuzado na mão direita. Sorria-lhe.     
         Ostentava uma boneca barata como se fosse uma jóia ou talismã. A boneca não  possuía cabelos, o plástico apenas imitando o contorno de supostos caracóis. Estava vestida com algo que semelhava couro, como um vestido colado à falsa pele, o mesmo que lhe revestia  os pés contornando as pernas como botas de cano longo, tudo branco e vermelho com largos círculos debruados de dourado semelhando um cinto.
        Os modos como a garota manipulava o objeto fazia com que a luz que se despejava em filetes esparsos pelas frestas da tapera escura se concentrasse ao seu redor absorvida pelo couro ou pela cor. O ambiente era esverdeado e fresco. Rômulo não queria ir-se embora porque sentia-se inexplicavelmente oculto,  protegido de tudo o que almejava evitar.
      A garota com a boneca adentrou pelos cômodos através de meandros insondáveis. A outra concentrou nele a expressão, os olhos escuros como poços de um carvão vivo, assustado. A irmã retornou sorrindo-lhe marota, se achegando. “Aperte a minha mão” ela falou, como se as próprias  palavras pertencessem a uma língua estranha. A outra se angustiou tanto que a intensidade de seus sentimentos atingiu Rômulo, que a olhou de relance.    
      O rosto contraído num ar de puro alarme parecia ferido, mas sólido, carregado da presença esverdeada do mundo que evoluía no interior da sala pobre. Pareceu-lhe a beleza ideal entrevista no espaço daquele relance que o envolveu num átimo de contemplação pura.
      “Aperte a minha mão”, a garota tornou a sugerir, agora com uma voz mais dura, atrevida, segura, na verdade um comando. “Não!” a outra deixou escapar como um grunhido por entre os lábios crispados.

- Deixe disso, Rossana. – a mais mocinha  apareceu no umbral que comunicava a sala aos outros cômodos. Como um relâmpago Rossana se moveu ocultando-se novamente no interior da casa. Quase como num ato reflexo Rômulo pôde divisar uma coisa mole e pegajosa oculta em sua mão enquanto ela corria. Compreendeu-lhe a intenção, conhecia o brinquedo da “Geleka”. Sorriu instintivamente da  audácia da menina.
         A menor voltou à sua reserva costumeira olhando os próprios pés como que desejosa de que ninguém percebesse que continuava ali. Mas havia nela um alívio como se houvesse de algum modo relaxado. Já a recém-chegada era grave, sóbria, um ícone de igreja espreitando por entre os cílios grandes e curvos que oscilavam sobre os olhos castanhos, luminosos, soberbos. O Bento chegou. Rômulo levantou cumprimentando. Ele o conduziu a um quarto ainda mais desguarnecido do que a sala.
           A mãe estava ali, deitada, o corpo jazendo imóvel. Devia ser mais nova do que aparentava, Rômulo supôs, devido à pouca idade dos filhos. Mas o rosto precocemente encarquilhado, naquele lugar destacado do universo, levavam a uma sensação de impotência que no entanto estava envolta por uma banalidade dúbia, como se o fundo do ser fosse o cotidiano menos dotado de grandeza, glória ou  mistério, o trivial da miséria, o feijão com arroz, a lata de sardinhas banhadas em óleo comestível, as panelas de alumínio encardidas, amassadas, com cabos soltos, as cortinas de plástico, o nada no pensamento-nenhum e havia contudo uma porta oculta ligando tudo isso ao repertório eterno das formas ideais, imutáveis, perfeitas. Uma verdade feita de redondez, limitação, acabamento, princípios e fins incomunicáveis, absolutos.
        O Bento via que a mãe estava morrendo. O câncer devorava-lhe, nada havia a fazer e ele deixava-se ficar perto dela como que temeroso de abandonar-lhe o espírito que ele devia pressentir ao redor, enquanto o corpo repousava no sono provocado por remédios fornecidos pelo hospital público cujo atendimento fora garantido pela amizade Rômulo-Otávio.
       Saíram dali, os passos presos no visgo do arquétipo, o quarto abafado coexistindo com as lembranças mais antigas dentro deles, forçando por inscrever uma mensagem cuja verdade não possuía transcrição, esgotando-se no código, nos sinais, mas tão capaz de comover, de fazê-los parar, de fazê-los arrependidos da juventude  que os sobrelevava quase sem vínculos com aquele núcleo telúrico das origens. Imediatamente puseram-se a falar como se a voz os pudesse orientar, aproximando-os em  meio a um cerrado nevoeiro:

-          Por favor, aceite, Bento – Rômulo insistia.

-          Carece não... – O outro redargüiu, evasivo.

-          Faço questão. – Rômulo estendia o dinheiro. Bento suspirou fundo, olhando-o de frente, emocionado e triste.

-          Não vou me esquecer. – queria assim expressar o quanto estava agradecido e Rômulo o deixou com instruções para voltar ao trabalho dali a um mês quando então o Casa & Companhia,  nome pretensamente esnobe sugerido por Otávio, começaria a funcionar.

                 O carro engolia a distância, Rômulo sentindo como se voltando à vida, surgindo de  algum zero universal. Gradualmente as taperas esparsas que ainda se viam através da rodovia principal iam se alongando, desaparecendo, e o cenário mudou. Agora surgiam prédios novos com linhas modernas, arrogantes, sensuais, cheios de uma atmosfera artificial que não deixava de ser aconchegante mas parecia restrita ao mundo dos homens – nada havia da ordem latente, misturada ao princípio oculto das coisas, tudo era um caos harmônico de pura resolução e propósito, as cores claras, sem contornos. O contraste não era afastado pelo ser gradual da mudança. Continuava pressentido no ar novo que surgia, revigorando a alma, renovando os seres.
            Rômulo sentia-se estranhamente culpado pelo passado eternamente abandonado mas também que nada tinha na verdade a ver com ele. Era um ser sem origem cuja verdade estaria talvez no porvir. Não sabia, porém, continuava afastado de si mesmo. Ausente, girando em torno, procurando em ambos os lados. Tudo seu era apenas a visão. Quisera ouvir-se. Só havia pensamentos soltos como fugitivos apressados de alguma corrente principal. Onde estaria essa corrente? Então não haveria nenhum elo? Tão somente os comandos de impressões fugazes
         Os prédios se uniam mais e mais. Imperceptivelmente, ocultando as faltas entre os espaços, mascarando os anseios de ordem ou profundidade ou centro unificador. Rômulo abandonava-se ao frio resoluto e vácuo crescendo no interior da alma. Estava agora praticamente no núcleo da pequena cidade. Feitoria projetava-se por todos os  arredores e ele repentinamente obteve, como um pressentimento concreto muito nítido, a sensação de que a constituía no agora – o momento preciso, o cerne da realidade mesma tão difícil de alcançar pela mente que presencia só o que já obteve computado perceptivamente e passou ou aquilo de que já traçou os parâmetros e espera.
          Mas ele se via no meio, as ruas cheias de lojas, de gente, de céu e sensação. Ele era aquilo tudo fazendo-o ao mesmo tempo, constituindo-o, não a um outro, e no entanto ele era algo que não se esgotava no simples ser elementar como um nó em uma trama, ele mudava o ser, predeterminava o real com suas escolhas, era onipotente em um certo sentido e Feitoria inteira desse modo lhe pertencia. Ébrio das casas e cores misturadas à sua súbita revelação interior, caminhou até o Clube de Conferências.
           Não costumava sentir-se assim, relaxado, dono do seu próprio tempo, senhor dos gestos, saboreando os passos, antigamente? Sim, antes de Cristiana mostrar-lhe a fissura que se escondera nas dobras da noite plena... Mas não queria também pensar nisso agora. Um vislumbre do ser lhe havia sussurrado uma possível revolução e ele aproveitava cada instante com a sensação de ternura que lhe sobreviera, a ele, um homem pastoreando o ser.
      O lusco-fusco estava arrebatador. O céu projetava um colorido fantástico caindo como pó dourado sobre o mundo, envolvendo tudo. O vento suave refrescava-lhe os membros revigorando a vontade. Como alguém que há muito espera pelo retorno adentrou o clube, o viajante que por fim reencontra o lar.
             Subiu as escadas decidido, altaneiro. O salão estava relativamente vazio. Combinara com Leda o encontro aquela hora, mas ele não a divisava agora por entre as poltronas. Sua figura desenhava-se em meio ao ambiente, um tanto solitário,  atrativo, exibindo um halo poderoso e viril. Hesitou na entrada, por alguns instantes. A apreensão do ambiente se lhe transformava os dados dos sentidos chegando-lhe solta, descompromissada, brincalhona, como se nada importasse nem um pouco. Rômulo pensou se não haveria talvez um engano.
        Teriam combinado no saguão ou na sala em que o Lopes realizaria sua conferência, como costumava ser, às quintas-feiras? Não precisaram aquele detalhe, na verdade, tão acostumados estavam a encontrar-se no saguão. Mas o fato dela não estar ali o fez pensar que afinal não custava nada conferir se por ventura Leda já não esperava agora por ele, na sala.
        Caminhou pelo corredor. A sala estava vazia, como ele teria previsto  pelo horário, mas tampouco Leda encontrava-se ali. Algo o impelia, no entanto, para o interior. Os lugares vazios o atraíam. Estudava-os vagarosamente. Pareciam corresponder a algo nele que era árido, distante, desconhecido. As cadeiras com suporte para escrita, de tipo universitário, deixavam-se estar, como coisas inertes dotadas porém da presença estranha da materialidade pura. As luzes despejavam-se do teto, brancas, com um quê de impiedoso que as restringia.
       Andou por meio das cadeiras, bem lento, sem dar-se conta, mergulhado no silêncio da hora eterna, a mesa do mestre encarando-o. Confundia-se com as coisas evaporadas pelo seu desuso, ele também desencontrado. Eram irmãos no destino uno de seres que serenamente aguardavam. O vento rodopiou em sua face, entrando em ondas retas pela abertura. Ele saltou com passos de menino que se adianta impelido por alguma novidade a brilhar à sua frente e alcançou o espaço aberto. Debruçou-se no parapeito.
         A noite começava a revestir-se de suas luzes. Feitoria estendia-se sob seu olhar emocionado. O puro ser sem nome o tomou novamente como efetividade de sua existência mesma – ele brincava na face do tempo. Aspirou com força, profundamente. Um perfume novo o envolveu, o aroma sobrepondo-se à embriaguez da plenitude.
           Conhecia aquele perfume. Era o de Leda, ele sabia. Sorriu consigo mesmo.  Era bom encontrá-la agora. Ele a abraçaria, sim ele, coisa que acontecia tão raramente, acostumados como estavam a ser ela a tomar sempre todas as iniciativas. Ele a abraçaria agora e nesse abraço selaria a sua aceitação de tudo. Do mundo que se abria pela visão da janela e que ele amava, também daquilo que o mundo forçosamente implicava. Leda, Otávio, a realidade que lhe fôra desvelada como negação de sua neutralidade imparcial assim como de sua inocência. Porque – ele agora compreendia- sempre soubera daquelas atividades como existindo no país e no mundo mas sentira-se como um ser comum, imparticipado, e portanto isento, não-relacionado a elas. Mas poderia sustentar-se assim diante de si mesmo para sempre? Conhecia as pessoas, o processo o abarcava.
            Mas saber por si só não é de algum modo estar em relação com aquilo que se sabe? Existiria algo assim como isenção e neutralidade quando se tratava do saber de um crime? E no entanto o mundo – aquela poderosa síntese de tudo o que ele amava – não incluía  tudo isso e também a ele mesmo, que agora não sabia o que fazer do seu saber, tanto quanto de sua ignorância?
           Então ele abraçaria Leda e selaria a aceitação da realidade que não obstante ele sabia também que em algum momento teria que enfrentar como ao seu próprio rosto no espelho de sua própria consciência... Voltou-se. Não era Leda quem estava ali mas não soube disso imediatamente. O perfume o fizera esperar pela visão e a mulher à sua frente parecia Leda, vestia uma blusa que já havia visto  Leda  usar, a mesma cor, a mesma altura, o mesmo ar... Mas a figura dela se impôs como um dado puro de um universo exterior irredutível ao seu eu, expectativas, crenças, suposições, desejos...
           Era Leda por um instante e ele iria abraça-la mas logo não era Leda e ele desejava o abraço mas os olhos da mulher desconhecida dardejavam para dentro dele, mesméricos, radiantes, lindos como fontes mágicas de um ser futuro – ela lhe pareceu estonteante em seu momento sob o foco de luz da sala – aquilo mesmo que ele sempre desejara, afinal, a emancipação de seus anseios recorrentes, uma prova da existência da matéria e do ser enfim percebido... Viu que ela sorria para ele com naturalidade algo forçada.
          Ele não podia mover-se. Estava preso à atmosfera da revelação. Não podia sorrir, falar, e sim apenas meramente contemplar. Pestanejou constrangido, buscando a normalidade, perturbado agora por tudo aquilo que subitamente o atingira sob o invólucro de um  silêncio absoluto. Forçou-se a enxergar-lhe os defeitos. Criticamente considerada parecia um tipo bastante comum. Seu porte, seu talhe, lembravam Leda mas seus cabelos era mais escuros, os olhos mais profundos, quase ameaçadores. Seu mutismo pareceu incomodá-la e agora não sorria mais, encarando-o apenas, com certa impaciência, semelhando uma luta íntima a fim de romper o silêncio ou talvez atravessar a atmosfera membranosa que se havia formado como um visco repentino entre os dois, eles, na sala.



 V

           Era como alguém que reconhece a forma de um obstáculo e não ousa tentar contorná-lo por talvez já ter alhures constatado a impossibilidade. Mais secretamente semelhava um animal esperto retrocedendo com o fito de evitar uma conhecida armadilha. Em todo caso Rômulo considerou indescritível a expressão que ela exibia sem ter talvez consciência disso e no entanto, sem prejuízo de não ser descritível, era tão profundamente compreensível que chegava a ser perturbador – e ele a viu meramente voltar-lhe as costas a fim de sair da sala. Nesse instante porém alguém que entrava  a interceptou.

-          Rosângela! Estava te procurando por todo lugar! – exclamou Romeo, à guisa de saudação.       
                Ela continuou em silêncio mas deve ter sorrido para ele pois Romeo, que se encontrava de frente para Rômulo, exibiu também um sorriso como se correspondendo. Ele levantou a vista para Rômulo e acenou.

-          Oi, Rômulo. – não apresentou a mulher. Antes, um tanto desequilibradamente, caminhou para fora da sala forçando-a a acompanhá-lo através da mão que ele unira à dela com resolução.

           As pessoas começaram a chegar. A sala gradativamente se compunha  como uma platéia ávida, expectante. A mulher retornou  com Romeo e assentaram-se junto à porta. Otávio acercou-se de Rômulo e lançou-lhe uma expressão  sobrecarregada, repleta de sugestões lançadas como óbvias mas que a Rômulo permaneciam simplesmente incompreensíveis. Depois o Doido entrou, acenando-lhe um tanto espalhafatoso. Por fim Leda apareceu, penetrando na sala os passos miúdos, aos arrancos, incomodada porque fôra antecedida em alguns minutos pelo próprio Lopes que assumia o seu lugar de propiciador na reunião de toda aquela horda.
                 Algo se soltara porém. Rômulo sentia-se compulsivamente zombeteiro, um fundo de agressividade o compunha deixando-o ambíguo e agudo como se quisesse e pudesse revogar todos os princípios e queimar todas as pontes de retirada. O Lopes reiniciou:

       “Assim um devir se passa como um fluxo liberado do desejo que já não se  representa estratificado num dado já-aí à mão mas que se expressa numa intenção que se sugere a partir das linhas que traça:colorante, sonora e musical ou contemplativa mas sem que a contemplação seja simples passividade. Antes ela é contraente, forjando lençóis de tempo que se prolongam no sentido do passado-futuro eternos, aion, esquivando-se tanto ao presente vivido como ao esquema sensório-motor recognitivo. Assim o que temos são figuras que se compõem a partir das potências do falso, dos disfarces, das aparências puras que não recobrem essências mas remetem ao poder do desejo que quer liberar-se na expressão, na apreensão do espaço pelo deslocamento das funções estanques. É o caso das sinestesias mas é também o caso do olhar háptico, aquele que não está na neutralidade do ver que só é possível a partir de uma posição, de uma distância, mas é um olhar que alcança, que toca...”

           O Lopes prosseguia. As pessoas se sublimavam, os corpos quietos, na pura recepção de suas palavras funcionando como chaves a levarem-nas a regiões anteriormente ocultas. Rômulo sentia-se invadido pelo olhar da mulher que estava com Romeo. Ela voltava-se para ele a toda hora de um modo imperceptível aos outros mas que a Rômulo parecia ao mesmo tempo delicioso e imperdoável. Havia uma tensão nova, o ar carregado, ele julgou que todos partilhavam aquela sensação estranha. Algo mudara irreversivelmente mas ele não poderia explicitar exatamente em quê.
                Um movimento desordenado vibrou em meio à silenciosa quietude da assistência. Rômulo voltou-se. Era o Doido que não parecia capaz de conter-se no assento. Seus olhos exageradamente arregalados pareciam ponteiros a comandar a espantosa carga de sentimentos explosivos que lhe agitavam o corpo sob o efeito das palavras do Lopes. Este agora concentrava-se  na questão dos delírios, atravessando as regiões da loucura como alguém capaz de desvendá-las.

          “O louco, o anormal, é alguém que desterritorializou o seu campo perceptivo  de modo a projetar o corpo intensivo, a possibilidade pura enquanto sensação liberta do automatismo sensório-motor o qual reproduz e nivela a consciência a partir das crenças e das práticas ditadas pela dominação dos aparelhos de estado...”

           O Doido agora não se continha mais. Interrompeu o Lopes.

    - Isso, isso mesmo. Nós temos uma verdade a proclamar. Nós vemos mais do que os outros. Nós vemos o que eles não querem ver. Não é? Não é?

           O seu tom elevado, emocionado, reverberou pela sala destoando por completo da atitude sóbria de Lopes  tanto quanto do ar reflexivo e discreto da audiência. Os rostos se moveram na direção do Doido, desaprovativamente. O Lopes a princípio pareceu apenas tentar contê-lo.

-   Talvez o que não possam. Neste nível apenas procuramos abrir a noção de afecções, liberá-la dos esquematismos, mostrar que há no corpo uma verdadeira criação no campo dos afetos ou  pelo menos que isso é possível, que não se sabe o que é que pode um corpo.

           Algumas pessoas, retornando  à posição costumeira dos rostos fincados à frente, esboçaram um semi-sorriso altaneiro como a mostrar que compreendiam e apreciavam a justa medida elegante da resposta do Lopes. Mas o Doido não se contentou.

-          Não podem? Não podem porque não querem, porque eles se servem disso para continuar não vendo, mas eu sei, eu sei...

-          Meu amigo, estamos aqui trabalhando um tema de modo algum fácil e não podemos nos deter na mera discussão, tola porque incapaz de nos fazer avançar, compreende? Por favor, vamos continuar...

-          Mas é importante eles verem! Eles, todo mundo aqui, por exemplo, acha bonito falar mas precisamos também mostrar que existe a verdade que não querem ver, existe porque nós vemos, mas eles nos chamam de loucos para que o que dizemos seja considerado loucura ou mentira, mas é isso que é a verdade, o que nós vemos...    

                O Lopes olhou duro, sua voz tornou-se gélida, cortante:

-      A verdade é uma problematização do sentido, não uma solução. Você está atrapalhando a conferência, se não for capaz de acompanhá-la pedirei que se retire.

                A dolorosa expressão do Doido soou tão pungente que Rômulo a sentiu como um aperto no estômago que se contraiu, deixando-o com  um gosto amargo na boca. Os olhos do Doido se estreitaram. De repente algo nele pareceu se derramar por dentro, uma luz plácida o envolveu com um halo de aceitação e atemporalidade supremas:

-    Eu sei tudo.

       Levantou-se deixando a sala. As pessoas respiraram aliviadas. O Lopes prosseguiu após um breve comentário sobre a leviandade das conclusões apressadas, demasiado fáceis. Na manhã seguinte Rômulo soube por Otávio que o Doido se suicidara saltando do último andar do Clube de Conferências, aproximadamente duas horas após a palestra do Lopes.
            Rômulo estava inspecionando o andamento da obra quando Otavio se acercou, relatando-lhe o ocorrido. Não queria crer. Naquele momento percebeu que havia algo que o ligava ao Doido, uma amizade genuína, um perdão cósmico, algo inexplicável que se revelava agora como um sentimento de urgência, de culpa. Negligenciara-o. Talvez fosse ele, Rômulo, o único ser em Feitoria capaz de impedir aquele ato obviamente composto por desespero e rejeição, talvez se o houvesse procurado, conversado com ele, escutado, se pudesse ter agido como um amigo...
          Deu as costas a Otávio, entrou no carro e saiu  a esmo, penetrando na auto-estrada que não parecia levar a parte alguma. O suicídio do Doido semelhava um ultimatum existencial. Como poderia ele continuar, como se nada houvesse acontecido ou se alterado?
           Como pudera conviver com a podridão, a hipocrisia, de um modo que salientava sua cumplicidade? Como é que havia deixado as coisas se deteriorarem assim? Mas o que mais o incomodava não era nem mesmo o fato de não saber, em absoluto, como reagir. Mas sim que não havia nele nada que pudesse se levantar e contrapor. Ele não tinha verdade alguma: certeza, identidade, aliança, tudo lhe viera de Leda, de Otávio... E ainda que se revelassem como falsos frutos de um esquema sujo, ainda que Rômulo os pudesse intimamente desmascarar e acusar, o que ele não possuía era algo a que substituir, a que colocar no seu lugar.
            Se nunca se houvesse aproximado de Leda ou de Otávio seria sempre um ser sem rosto, trabalhando anônimo e neutro por trás do balcão do botequim. Então eles se acercaram e lhe impuseram uma máscara imponente e dourada para trafegar em um mundo de fisionomias. A alternativa à máscara era ter um rosto. Mas ele não era substancialmente um alguém. Era... aquilo, um puro ser, o sol brilhando na janela quando ele despertava, o movimento aleatório dos fregueses no bar, as lembranças de Rodrigo, da estrada, de Patrick, sua casinha em Santana, o contato esparso com as mulheres que costumava atrair... Tudo era solto, sem vínculo, não houvera até então a necessidade de possuir uma verdade pela qual barganhar a vida e se constituir por imagem e semelhança. Era um ser sem forma. Como poderia sustentar uma revolta, ainda que fosse aquela mesma que se evolvia em seu peito fazendo-o chorar, desatinado, a correr febril pela estrada sem fim, sim, chorar, pelo Doido, por Patrick, por suas ilusões antigas e por quem mais... Quem mais...





                                                              Estava só. Era um ser-só destacada da espécie. Não tinha forma ou figura, atravessava os abismos dos ambientes às vezes inserida, às vezes bordejando, sem aderir. Aquele homem, no Clube, provocara nela um impulso tardio, algo de que não se lembrava mais. Sentia nele um igual.  Não que semelhasse ou parecesse ou pudesse ser como, mas sim como se a repetisse, fosse nela mesma, únicos, desdobrados um no outro ainda que não houvessem palavras nem gestos, apenas o intuito, as mãos...

  


        Rosângela recostou a cabeça no travesseiro, trêmula. A febre havia retornado, baixa, insinuante, fazendo-a tossir, suar, tremer... A languidez do que sentia emprestava asas ao universo sensível, as coisas se aureolavam de luz âmbar e linhas tênues, muito finas, que se desprendiam do contorno e ganhavam vida, perdendo-se depois no mistério.



               Ela se engolfava na promessa da redenção do sono mas a tosse golpeava-a e ela tornou a rever os olhos, a contemplar a face, o semblante impenetrável, um campo de força os mantivera suspensos, sem que fosse possível retroceder ou avançar e assim se mantinham em meio à febre. Subitamente ele cresceu em seu delírio. A unicidade do ser que eles eram a arrebatou e ela sentiu medo, um medo indescritível.



           Mãos a tomavam, pressionando suas costas, fazendo com que engolisse água, comprimidos, lágrimas misturadas com o ardor, suor, um novo ímpeto... O medo desapareceu, no segundo seguinte ela não sabia mais o que havia sentido ainda agora e estava eufórica. Tossia e falava:

-     Telefone para o Romeo, chame o Romeo... – respirou apressadamente. A mãe deixou-a só. O sono a tomou, repentino, turbulento, cheio de imagens turvas e ambíguas que se desfaziam em antíteses sem sentido. Quando Romeu entrou no quarto estava ainda adormecida. Ele a contemplou assim, tocando-lhe a face agora branda, pois a febre cedera. Ela abriu os olhos e sorriu.




      
VI
          Duas semanas após o suicídio do Doido, Rômulo estava sentado na praça, no mesmo banco em que uma vez o Doido o havia como que obrigado a ouvi-lo. A aula do Lopes, também hoje, estava  para começar.
            Ninguém chegara a cobrar do Lopes o resultado impensado de sua atitude cortante para com o Doido. Tampouco faria isso algum sentido. Lopes não tinha culpa do descontrole do outro, fazia o seu trabalho, não tinha responsabilidade em relação à conduta das pessoas que freqüentavam as conferências. Ainda assim, Rômulo sentado naquele banco prestes a iniciar mais um encontro com Lopes não podia deixar de sentir-se desconfortável como alguém entre dois deveres que se excluíam. Teria gostado de se solidarizar com o Doido. Não por supor no velho professor uma culpa direta mas porque afinal havia presenciado uma atitude talvez desnecessária de truculência elegante. Se o Doido pudesse falar, por certo não repudiaria o Lopes e seu discurso, para ele, tão desligado do real? Não lhe diria “Se você gostava mesmo de mim, Rômulo, como pode sorrir e cumprimentar esse homem que me matou?”
            E Rômulo gostava do Doido porque antevia nos seus gestos frágeis uma verdade que  o Lopes não aceitaria, nem ninguém mais, talvez, mas fundamentalmente a verdade da necessidade que um ser humano tem dos  outros, da compreensão do meio, de um cuidado e uma ternura humanos. Mas sabia que as coisas não se processavam  desse modo, que por exemplo, Lopes não havia matado o Doido, ainda que sua atitude aquela noite mostrasse não ser ele tão diferente dos outros que, como Otávio por exemplo, não hesitariam em ter agido exatamente do mesmo modo.
         E Rômulo gostava do Lopes. Sabia que ele operava em um nível fundamental que ainda que abarcasse plenamente o significado do que dizia relacionava-se mais com um modo de ver e estabelecer o sentido daquilo que realmente importava. Ao menos Lopes afirmava a liberdade inerente ao fato da existência de uma maneira que levava Rômulo a não se deixar sucumbir frente à verdade contrária proposta por Otávio e até mesmo Leda, de que o mundo humano se restringia a uma teia de interesses contraditórios onde a força bruta, como dinheiro e posição, afinal decidiam tudo.
            Mas Lopes mostrava que mesmo um fato aparente poderia recobrir muitos modos de se o interpretar e a grandeza no cerne das decisões não era algo possível de mascarar uma vez que se expressava como o sentido do que cada um produzia em seus atos e se o mundo de Otávio era um inferno, ainda que ele se assentasse no trono do diabo jamais se poderia afirmar  como algo mais do que um títere da podridão. No fim Otávio teria tão somente nojo de si mesmo.
            Assim Rômulo pensava que de um modo ou outro precisava do Lopes para não naufragar no mundo de Otávio. Quanto ao seu vínculo incontestável com aquele mundo, porém, não sabia como situar. Fôra inserido no turbilhão para servir a um esquema prévio. As supostas vantagens não o seduziam particularmente. O apartamento, o carro, o lindo restaurante que agora possuía não lhe pareciam de modo algum valer o que substituíam, o anonimato confortável do botequim, a natureza dada como o horizonte de uma vida pura como a de Patrick.
              Tornou a lembrar o Doido. Dentre todos em Feitoria ele era talvez o mais próximo do que Rodrigo e Patrick representavam. Pensou nele, com certo ardor. Queria que o perdoasse, não sabia ao certo porquê. Talvez, concluiu, se ele estivesse ali fosse agora o momento em que Rômulo é que teria algo a lhe contar com tanta urgência.
-          Oi, Rômulo, como é que é?
            Voltou-se, surpreso, deparando com duas figuras masculinas que lhe sorriam com simpatia. Eram o Rubens e o Nélio, colegas do Clube, com quem Rômulo havia conversado algumas vezes entre as conferências do Lopes.
-          Tudo bem. – Eles se assentaram, ladeando-o. Por uns segundos os três estiveram ali, no silêncio, aguardando. Depois o Nélio falou, como se o silêncio jamais houvesse existido.
-          Como se sente, Mister Rômulo, compartilhando o mesmo banco de praça com o futuro prefeito? – o tom de voz jocosamente buscava imitar os repórteres de televisão. A mímesis no entanto servia como um papel embrulhando o cerne de uma revelação surpreendente. Rômulo avaliou o Nélio. Cabelos crespos, claros, pele de bebê curtida de sol. Olhos pequenos, incisivos, zombeteiros, desafiadores. Então virou-se para o Rubens: rosto sério, compenetrado, algo melancólico nas cores neutras da face, os cabelos lisos e escuros completando o ar romântico. O pensamento de que ele não possuía olhos atravessou a mente de Rômulo como um clarão sem sentido. Então deparou com o olhar cético, sem expressão, como um espelho sem reflexo, infinita reticência que jamais diria coisa alguma apenas por dizer. Rômulo compreendeu que ele possuía um sentido de eternidade e se o próprio Rômulo nada falasse, revelando-se assim, de certa forma ao outro, poderiam virtualmente ficar ali, para sempre.
-         Você? – a palavra saltou, involuntariamente, premida em suas bordas pelo silêncio do olhar de Rubens. Este aquiesceu, tranqüilo, receptivo. Mas nada acrescentou como se ainda precisasse de mais alguma coisa para o fazer. Foi o Nélio quem continuou:
-         Isso mesmo, o Rubens. Eu serei o assessor principal do gabinete. Quanto a você...
                 Rômulo interrogou-se mudamente. Porque é que todo mundo estava sempre querendo designar-lhe a posição em esquemas que afinal lhe eram de todo alheios? Mas Nélio apenas acrescentou uma risada, meneando a cabeça como se Rômulo fosse um caso perdido, indefinível, não-encaixável. Aquilo o fez sentir assim, em suspenso. Rubens captou-lhe a hesitação e interveio inesperadamente.
-          Sim, e quanto a você, Rômulo? Sinceramente, até agora não conseguimos compreendê-lo. – a voz dele possuía um tom líquido, uma fluidez sensível que impressionava. Rômulo soube, ouvindo-o, que ele poderia persuadir a qualquer um do que bem entendesse.
-          Não sei do que é que vocês estão falando. – Rômulo replicou impensadamente, como um menino, defendendo-se. Estava para levantar-se do banco e largá-los ali.
-          Rômulo – a acentuação na voz de Rubens parecia conter ressonâncias místicas que sacralizavam o nome:
-          Rômulo... – agora era o ser mesmo que se lançava na bênção da voz – Veja, sabemos todos que você está associado ao Otávio e ao Saulo no negócio do restaurante. É claro que sabemos também para o que é que o restaurante vai servir. Mas podemos entender Otávio e Saulo. São políticos velhos, têm um pensamento elitista, fechado, conservador. Para eles o mundo é um lugar que lhes pertence e o resto da humanidade existe para os servir. Os outros que fazem parte do esquema deles são como uma côrte de que eles necessitam para reinar entre seus quase-iguais. Estes por sua vez se sentem bem aquinhoados apenas por não serem confundidos com a massa dos serviçais. Cada um com seu lugar num sistemazinho eterno, é tudo o que eles precisam. Mas você não pensa assim, eu sei que você não é assim.
                Rubens calou um pouco, como que procurando as palavras certas ou apenas deixando que o efeito da noite crescendo sobre o  mundo se misturasse à sua voz.
-          Observei você algumas vezes no bar. – insinuou ele, e Rômulo sentiu como se ele falasse de muito longe ou mesmo de dentro de seus próprios pensamentos. – Tem o ar de alguém que se libertou dos homens. Alguém que adotou alguma forma de quietismo, o alheamento oriental que se satisfaz com a contemplação dos campos, das planícies, coisas assim. Dificilmente eu afirmaria que uma ambição ou desejo pela posse de coisas materiais o levaria ao sistema de intrigas e falcatruas do tipo que o Otávio aprecia. Sim, aprecia, com todo o descaramento dele o Otávio é um tipo bem humano, o prazer dele é se envolver com as peripécias das pessoas, estar no meio delas e ainda que no fundo ele só queira se dar bem  isto é algo que ele considera comum a todos, ele apenas emprega os meios acessíveis para ser ele o favorecido em um meio de competição que o faz sentir bem e vivo, que ele considera estimulante, natural, saudável, a lei da existência, etc. – Rubens sorriu – Entende? – Rômulo assentiu.
-          Mas você não... Creio que preferiria as pedras e os animais aos seres ruidosos que são os homens. Então me diga, o que você está fazendo lá, com eles?
              A noite se completou subitamente. Rômulo entreviu um véu tênue estendido agora à sua frente e se ele o transpusesse... Para onde iria? Seria aquilo o libertar-se? Abrir-se com Rubens, falar-lhe do seu completamente nada interior, do seu vazio de ser que não o incomodava, que o fazia uno às coisas do mundo mas tão avesso a posições, planos, necessidades...
-          Não é fácil falar sobre isso, Rubens. Eu mesmo não sei. De repente o Otavio me apresentou um esquema, me inseriu nele e para protestar eu teria que assumir-me em completo antagonismo com ele. Não o aprovo. Não tenho o que antepor a isso. Não queria que fosse assim.
-          Preferia o seu bar?
         Rubens arriscou, como se precisasse de uma fórmula.
-          Sim. – Rômulo assentiu, com certa indiferença. O véu tremulava suspenso ao vento noturno. Seria uma possibilidade?
-          Rômulo, sinceramente seria perigoso pedir que você deixasse isso tudo agora e simplesmente se juntasse a nós. Os métodos do Otávio, e principalmente do Saulo, não são nada ortodoxos, você deve saber.
         Rômulo esboçou um meio sorriso como alguém frente a um resultado óbvio. Rubens começou a falar, despreocupadamente.
-          Nós estávamos comentando... Porque você acha que as revoluções não costumam dar certo? – a pergunta deslocada o surpreendeu. Passivamente a considerou. –Não sei. – respondeu a Nelio, canhestro. Mas compreendia a colocação.
-          Pois é, as revoluções são feitas contra as opressões mas depois que se instalam elas mesmas costumam se tornar opressivas. Porque será?
-          Creio que isso tem a ver com o fato – o Rubens começou, teorizando como se fosse ele mesmo um conferencista do Clube – de que as pessoas que se propõem a lutar contra as opressões têm basicamente duas orientações mais salientes. Alguns são imediatistas. Fundamentalmente não diferem dos opressores. Não são igualitaristas. Apenas lhes incomoda e muito que os detentores do poder, os possuidores dos bens, não sejam eles. Querem sê-lo e lutam, no fundo apenas para ocupar-lhes o lugar. Outros questionam o sistema pela base. O que os incomoda é que exista domínio, desigualdade entre os seres humanos. Gostariam que o mundo fosse paz e amor e abundância para todos com liberdade pessoal irrestrita. Estes não são imediatistas. Compreendem que o que almejam equivale mais a um processo interior de conversão das mentes, que requer tempo, evolução. Assim as revoluções ainda que sustentadas por estes são na prática efetivadas por aqueles. A execução tem sempre algo de vil enquanto a inspiração permanece nobre... Não seria assim? – Rômulo achou graça naquilo.
-          Então Lênin quereria ser o tzar?
-          Lênin talvez não, mas Stalin...
             Mais um pouco de silêncio. A conferência do Lopes devia estar começando. Levantaram-se uníssonos, bons companheiros, andando até o Clube, sentindo-se confortados sem saber bem porque, ainda que Rômulo interiormente hesitasse em aceitar que as coisas, como as revoluções, se resolvessem por fatores tão simples assim.

                                                                                              §§§


     -   Rosângela, não posso compreender essa loucura. Porque está agindo assim? Quer morrer? Não sabe que precisa se cuidar?
-          Vou me cuidar, não se preocupe.
           Estava voltando o tremor. Não queria que a mãe percebesse. Consultou o relógio. Romeo deveria demorar ainda uma meia hora pelo que estava combinado. Temia que até lá a mãe fizesse uma cena e ele as encontrasse aos gritos, agredindo-se. Buscou forças para se controlar.
-          Vai se cuidar... Na casa do Romeo? Pois sim! Mas por que vocês não se casam? Por que sair assim como uma mulher à toa?
            A mãe a ofendia, deliberadamente. Rosângela queria continuar calada. Mas ela forçava  com o olhar, o jeito de uma fera acuando, impiedosa.
-          Esse lugar me deprime... Me faz lembrar o meu pai.
          Calaram-se. A mãe sentou-se na borda da cama. Não parecia disposta a sair do quarto.
-          Você precisa ir a um psicólogo. Tem que fazer tratamento. Depressão é doença.
             Rosângela não respondeu. Voltou a consultar o relógio. Pensou em ir à cozinha, andar pela casa, despedir-se das coisas enquanto aguardava que Romeo a levasse a um futuro feliz. Como em um conto de fadas, pensou. Um suor lhe corou a face. A voz da mãe soou baixa, tenebrosa:
-          Se a pessoa não se trata a depressão toma conta e a pessoa entra na depressão total para sempre, nunca mais sai.
          As sombras dançavam em torno do vulto sentado na cama, projetando-se. Rosângela recuou tentando bloquear a ameaça. Lágrimas assomaram-lhe, como podia a mãe falar assim?
          Por que não lhe consolava com palavras amenas? Por que a empurrava para o abismo em cuja borda por vezes sem conta sentia-se assentar, o vento duro, frio, soprando por entre as rochas indiferentes no cenário infenso a ela, a qualquer coisa viva, a qualquer sentimento ou necessidade...
-          Como você pode falar desse jeito? É isso o que quer para mim?
           Descontrolou-se dando voz ao que pensava. A mãe exultou como se esperasse exatamente por isso.
-          Estou falando a verdade! É isso o que acontece com quem não se cuida. E depois se ele te abandonar? Vai voltar de mala e cuia, sabe lá com que doença? Para quê? Não tem sentido isso!
-          Estou bem, estou me sentindo bem...
-          E essa febre? É tuberculose! Só pode ser tuberculose!
           A voz possuía garras que a  confrangiam, dilacerando-a. Uma pontada explodiu em seu  peito na altura do coração e ela pensou que ia desmaiar. A campainha soou. Era Romeo. Suspirou. Saiu. O ar da noite a envolveu enquanto Romeo  arrumava as poucas malas no banco traseiro do automóvel.
     VII
            Sim, possuía um rosto, por que não? Porque havia duvidado, porque havia se sentido sem face diante de todas aquelas máscaras? Não confiar em ninguém – agora sabia – era a regra do mundo das puras aparências e agora sabia também o que queria isto dizer: não pressupor que houvesse alguém com quem se pusesse depor a máscara, mostrar-se tal qual é, deixando-se ver, rugas, gorduras, defeitos, qualquer olheira ou espinha que desmontasse o efeito da máscara. Não pressupor que houvesse alguém com quem, uma vez a regra violada, uma vez isso feito, fosse possível ainda ficar totalmente tranqüilo, sabendo que não se aproveitariam disso mais tarde. Não. E o que sabia agora era que entre eles, naquele sistema, não.
          Então enquanto o feerismo da luz o envolvia, enquanto se misturava ao conjunto colorido e bem traçado da trupe elegante no dia da inauguração, sentia que possuía um rosto e que essa era a sua máscara. As pessoas não o viam, as pessoas continuavam pensando que ele era tão somente  o terno caro, o cabelo encaracolado, brilhando, a tez morena radiosa, a masculinidade flexível e envolvente, o magnetismo. Assim exatamente como Otavio, um tom mais claro, a lisura dos cabelos escorrendo por entre a atenção das mulheres.
           Hesitando um pouco Rômulo percebia que Otávio, não ele próprio, era o dono da festa. A hesitação porém não estava no reino dos fatos do seu ser consigo mesmo entre os outros, mas sim no plano do julgamento. Pois ele sobrepôs por um instante à severidade a compaixão. Compaixão pela pequenês encerrada na sementeira dos valores, compaixão pela enormidade dos ramos que semelhando barras os mantinha presos ao sistema sem sentido que os denegava naquilo que possuíam de verdadeiro para deles arrancar apenas centelhas impessoais, desfiguradas do seu cerne próprio pois a aparência dispensava a expressão, o essencial, o real, a voz,  mantidos no silêncio.
             Eles se ostentavam como animais em um circo de variedades dos quais a assistência se entretem em tentar desvendar o sentido  dos gestos, hábitos e atitudes. Mas à diferença destes eles haviam interiorizado as regras pelos quais seus traços seriam interpretados. Logo, Rômulo renunciou mesmo à compaixão compreendendo que não eram de modo algum como animais e sim como feras. O preço da interiorização das fórmulas de interpretação havia sido a habilidade para manejá-las, aprisionando também os demais. Não haveria ali jamais o sentido do perdão. Compaixão real só era devida ao pobre coitado que realmente se importasse.
-    Rômulo, este é o Jairo Gonçalvez.
             O tom de voz de  Otávio continha uma insinuação de verdadeira reverência. Rômulo demorou alguns segundos para relacionar o nome famoso ao rosto tão conhecido. Jairo Gonçalvez era um ícone do teatro e da televisão, famoso em todo o  país. Sorriu, entre prazeroso e surpreso por vê-lo ali. Estava acostumado a  pensar naquelas pessoas como a turba corrupta dos sequazes de Otávio e do pai, o senhor Saulo. Mas Jairo Gonçalvez trazia-lhe recordações da infância, quando o via na televisão ostentando a aura dos artistas sensíveis, o apanágio da correção, o modelo da humanidade. Por um momento não foi capaz de ligar os dois sentidos da contradição, o “ele” e o “ali”. Algo no sorriso do ícone, apertando-lhe a mão sem candura, despertou a desconfiança e foi como se uma barreira se houvesse rompido, uma certeza se houvesse desfeito e ele, Rômulo, houvesse surpreendido alguém por trás da máscara e visto que não havia absolutamente nada.
-          Mas que lindo lugar, rapaz! Está de parabéns! –Jairo contratulava enquanto Otávio sorria de um modo que obrigava a constatar que ele sinceramente apreciava estar ouvindo Jairo Gonçalvez elogiar Rômulo. Este anuiu, entre desconfiado, lisongeado e atento.
-          Fizemos o possível – replicou, com simplicidade.
-          Jairo Gonçalves está em Feitoria para realizar um grande evento – Otávio explicou em tom de anunciação – ele quer trazer a arte às massas, a cultura ao povo! Encenará o Édipo em nossos palcos, o que contribuirá para a grandeza de Feitoria.
                       Discreto, Jairo Gonçalves se sobrepunha às palavras de Otávio como se fosse uma fotografia entre os dizeres pomposos de um reclame.
-          Já viram o elenco, já conversaram com as meninas?
                   Ato contínuo Jairo Gonçalves voltou-se,  comunicando-se através de gestos quase imperceptíveis com uma mulher sentada a uma mesa próxima. Ela se aproximou:
-          Norah Sanchez, minha esposa – Jairo fez as apresentações. – Otávio, filho do prefeito, Rômulo, proprietário do estabelecimento. Ainda não conhecem o elenco.
-          Mas que fantástico isso aqui, Rômulo!
              Agradeceu. Estava um pouco fascinado. Ela também era uma atriz famosa.
 – Porque não me acompanham? O elenco está reunido ali – comentou Norah com ar casual enquanto se dirigia à mesa onde estivera com as outras pessoas. Um grupo ruidoso e alegre os recebeu.
-          Rômulo, estou adorando! Mas que champagne deliciosa vocês têm! – uma moça muito nova e alegre congratulava e Otávio deixou-se ficar com eles, trocando comentários sobre fatos e pessoas de conhecimento comum enquanto Rômulo, na qualidade de anfitrião, agora sentindo-se mais como o dono do lugar, precisava circular. Caminhou entre as mesas cheias, recebendo cumprimentos, sendo apresentado a uns e outros, supervisionando o serviço.
               
                 O salão era grande, comportava inúmeras mesas com relativa folga de espaço, mas hoje a inauguração reunia a elite de Feitoria mais a das cidades vizinhas e ainda pessoas de lugares longínquos, da capital, das grandes cidades, com quem o senhor Saulo detinha relações, que ali estavam para dar peso ao evento, prestigiá-lo. Manoel Augusto  destacava-se, favorecido pelo Senhor Saulo.
                Arcadas contornadas por meia-luas cujas pontas se tocavam abriam-se para o ar fresco e as luzes altas, de mercúrio, que circundavam o restaurante. Na pista de danças, casais ondulavam abraçando-se, a música era o estofo do mundo. Rômulo experimentou a fusão entre todos no ambiente incorporando agora o seu novo papel de mestre de cerimônias. Absorveu-se por completo e de repente não importava mais quem era o quê, todos corresponderiam talvez a um mesmo élan que os animava por dentro e os fazia co-extensos no tempo. Os mesmos gestos somando-se para compor um movimento único.
               Logo à entrada, um frêmito de fotos assinalava a chegada de Leda, acompanhada do pai. Sorrindo e distribuindo discretas piscadelas, ela acomodou o pai à mesa reservada enquanto Rômulo se aproximava.  Ele deixou que ela o beijasse de leve nos lábios. O pai acenou-lhe, com austera simpatia.
-          Sei que está ocupado, meu bem, mas por favor, vamos dançar. A música é linda... não sei viver sem você... – ela acrescentou a frase feita como um mero gracejo e ele a acompanhou.
               Abraçá-la e deixar-se conduzir pela suave harmonia repousou o seu espírito, reanimando-lhe as forças. Tudo parecia paz, cor, um cerne estável no caos dos seres provisórios. O momento fugaz passou. Deixou-a com o pai, à mesa,  agora já ocupada também por casais e pessoas amigas. Deambulou pelo salão. A identificação estava desvanecendo. Leda roubara-lhe algo em troca dos minutos sublimes na pista de danças.
            Cansado, sentindo-se subitamente solitário, caminhou até a área anexa ao salão, uma espécie de caramanchão gramado com bancos estilo Belle Époque e postes baixos de luz que os acompanhavam. Queria sorver o ar da noite como se assim pudesse refazer o seu ser original. Lembrou-se do próprio rosto que lhe fora devolvido como autopercepção desde que se vira envolto pelas luzes festivas da inauguração. Cruzou-lhe a mente o olhar da desconhecida como se nela morasse o segredo de se ter reencontrado no brilho. A mulher de Romeo... O pensamento era tão incongruente que ele se quis novamente apenas frívolo. Caminhou por entre as pessoas agora um tanto esparsas na noite aberta do caramanchão. Uma mão muito macia pousou –lhe ao ombro:
-          Cristiana!
              Ela resumia o dom de surpreendê-lo. Transferia a noite para dentro da face ardente e pousava na orla embebendo-se no olhar dele.
-          Não me convidou, seu ingrato! – ela comentou, zombeteira. Depois continuou:
-          Estou com a Nancy. Ela recebeu convite porque namora um dos fotógrafos.
-          Cristiana,  desculpe-me, a verdade é que... – “Não pensei nisso” iria ele completar com naturalidade mas pesou-lhe o semblante leve da moça e não quis magoá-la – Pensei que você viria, de qualquer modo, acho que todo mundo está aqui.  – sorriu para ela. Sentia-se muito grande e desajeitado.
-          Tudo bem. – ela respondeu a esmo. Começaram a andar, quase sem sentir e assentaram-se a um dos bancos.
-          A noite é tão cheia de magia... Você já viu como as estrelas nos respondem? Tão longe, parecem... Mas ao mesmo tempo é como se estivessem aqui, dentro de nós. –  ela falava com aquele tom homogêneo, baixo e algo impessoal que costumava usar quando se propunha à afirmação de coisas cheias de sentido, à guisa de uma fala atemporal por cima do próprio espaço que ocupavam.

                 Rômulo sentiu então que as palavras dela o penetravam como um bálsamo religando-o a algum contexto que lhe era tão familiar, extremamente aconchegante, no qual podiam se alhear de tudo e ser simplesmente eles mesmos.
                 Com um carinho impensado, cheio de pureza, quase com veneração, ele tocou-lhe a mão, envolvendo as diminutas palmas em suas próprias mãos morenas, grandes e fortes com seus dedos longos e ternos.
-          Rômulo!
              A voz carregada de alguma estridência, ainda que estudadamente  abafada, interrompeu o transe. Era Leda.
-          Estava te procurando! – ela acrescentou,  com um sorriso fino parecendo mais astuto à percepção da presença de Cristiana. Com muita simpatia cumprimentou a moça que agora não sorria e simplesmente fitava o mundo circundante sem espanto nem aquiescência.
-          Meu pai está esperando por nós, disse-lhe que aproveitaríamos a presença do senador Bomtempo para anunciar nosso noivado.
              Agora Cristiana sentiu-se afetar. Rômulo mesmo não podia acreditar no que estava ouvindo. Encarou Leda cujo olhar o enfrentou com tanta resolução e propósito que ele recuou. O ar da noite pareceu-lhe mais frio, impondo-se a ele e às mulheres que o ladeavam.
              Leda mudou de posição, postando-se à sua frente, a mão estendida num gesto óbvio para que ele a tomasse. Cristiana levantou-se. Tornara-se difícil esconder o desapontamento. Sua expressão não era totalmente interrogativa mas também não deixava passar nenhuma certeza. Ignorar o gesto de Leda, a mão estendida na noite, à vista de todos, tornava-se impossível. Rômulo fez o que ela exigia. Mas hesitava quanto a Cristiana, parada, postada à sombra da noite como uma guardiã da sua fraqueza, da sua mentira.
-          Venha conosco. – Leda convidou-a com desembaraço. – Você já viu o Jairo Gonçalves? Vou te apresentar a ele e ao elenco, você está sabendo da peça? – assim conversando, Leda monopolizando ostensivamente toda a cena, chegaram ao salão. Rômulo temeu que ela o fizesse subir ao pequeno palco ocupado pela orquestra, interrompesse a música e anunciasse o compromisso através do microfone. Mas Leda apenas o conduziu à mesa, ainda com Cristiana acompanhando, onde o pai a aguardava junto a outras pessoas.
-          Rômulo, este é o senador Bomtempo, muito amigo do papai. – o senhor, não tão idoso ainda, apertou-lhe a mão.
-          Parabéns, meu jovem, duplamente: pelo restaurante e pela jovem tão bela que logrou conquistar.
           Ele achou graça nas palavras pronunciadas com certa solenidade e agradeceu. O pai ergueu o brinde.
-          Aos futuros cônjuges! Felicidades! Deus os abençoe! – Cristiana levou a taça aos lábios presenciando tudo como uma testemunha a quem havia sido encarregado o puro ver sem participar.  Nada lhe dizia respeito.  Queria afastar-se. Não era costume seu hesitar. Um jornalista aproximou-se, seguido de um fotógrafo.
                                                                                                             §§§
                                                  
                Rosângela inspeciona as roupas no armário. Está há uma semana morando com Romeo, sente que ainda há muito o que arrumar. Anda a esmo pelo casarão. Sente-o às vezes muito perto, às vezes é como se ele não notasse a presença dela. Hoje porém constatava que Romeo parecia mais absorto, mais etéreo... Ela sentou-se no sofá, na sala magnificamente guarnecida. À ampla mesa ele trabalhava escrevendo sobre um Laptop.  Tudo parecia estranhamente completo e vazio. Havia tudo no interior, eles, as coisas... Mas o vazio os rodeava, não havia nada por volta, estavam sós como uma clareira em meio a uma floresta inexplorada.
-          Romeo...
            Ele não se voltou.
-          Romeo!
            Ela alteou a voz. Ele então pareceu ouvi-la. Ficou olhando para ela como que interrompido, à espera do que tinha a dizer.
-          Romeo, quer sair? Dar uma volta?
-          Não. Se não se importa, estou muito ocupado.
           A voz dele não possuía ressonância. Parecia oca, congruente com o vazio exterior. Fazia sentir-se estranhamente culpada. Sabia que o mundo a que Romeo pertencia estava reunido alhures, na festa da inauguração. Havia lido pelos jornais, não era difícil juntar as coisas, concluir que ele fora excluído por causa dela. Absorveu o ar vazio, respirando ruidosamente. Não sabia o que fazer das mãos.

   
VIII
         O sol dentro dele, a luz-substância, o todo-móvel-pleno, o prazer. Mas ele permanecia intocado. Era um arranha-céu projetando para fora o desejo do planeta por união e contato. Era algo pegajoso e tênue envolvendo-o. Era um ela-ele auto-devorante. Atingiram juntos o clímax como se o orgasmo fosse a liberação de um magma cósmico carregado de mana supraceleste. O seu estado à parte porém persistia e como de costume ela deixou-se estar em seus  braços. Rômulo então a retinha ali enquanto o sol da tarde deslizava lentamente as sombras por detrás das cortinas fechadas. Esperou pacientemente que ela retornasse.
-          O desejo pelas coisas que nos ultrapassam. Porque é que estou com essa frase na cabeça?
             Cristiana perguntou, soerguendo-se. Debruçou-se por sobre o casaco abandonado aos pés da cama. Dali retirou o cigarro que acendeu com um isqueiro.
-          Você anda fumando? – ele não se pejou de perguntar. Cristiana riu.
-           Que  é que tem? Algum problema? – algo nela retinha uma beligerância que ele julgou inscrita nos contornos alaranjados das sombras que passeavam pelas paredes do quarto,  impulsionadas pelo jogo de luz lá fora, retraçando virtualmente o balé sempiterno do sol nas ruas de Feitoria. 
-          Cristiana... – ele queria falar com ela, aproximar-se. Algo no ser real precisava sentir-se tocado, acariciado, na tela de algum interesse ou cuidado. Queria que ela soubesse que para ele não era como se tudo não passasse de um jogo de prazer, que sinceramente a prezava, a estimava.
-          Qual é, Rômulo? Vai bancar o “pápi” agora, para cima de mim? – ela olhou em seus olhos.
 - Não me venha com essa culpa, eu te peço, por favor. Estou aqui porque  quero, eu e você  somos adultos, sei de Leda e não me importo.
              Ela tragou longamente. Ele pensou se não era ele mesmo, o Rômulo sempre desconhecido, que precisava se sentir participante para mais do que simplesmente participado.
-          Pensei que você se importasse. – Rômulo aduziu, impensadamente. Ela o mirou, agora de relance, incrédula. Depois temperou a aparente estupefação com  um riso doce e irônico.
-          Ah, tudo bem. Me importo, mas só um pouquinho. – eles riram.
-          Sabe, tenho um encontro. A Leda, lembra? Me apresentou o Jairo Gonçalvez... Pois ele marcou uma entrevista comigo! Sei lá porque na hora eu disse que queria ser atriz e ele adorou a idéia ou assim pareceu. Fico pensando se não foi só efeito, por causa do momento, da festa e tudo... Já pensou se eu chego, ele me olha com  cara de quem nunca me viu?
            Rômulo não pode evitar uma certa tensão. Desconfiava agora de tudo e de todos. Não tinha certeza de que aquele seria um bom caminho para ela.
-          Para que ir, então? Deixa isso para lá. Você não precisa...
-          Como sabe do que eu preciso ou não?
             Ela tragou novamente como se retirasse do cigarro uma índole pronta e agressiva. Então observou-o meditativamente, moderando o tom de voz.
-          Sério, Rômulo, o que é que sabe sobre a minha vida?
             Cristiana estava sentada na cama, usando o lençol como uma espécie de túnica que deixava os ombros nus. Ele reparou na graça da curva macia dos ombros, o tom bronzeado sobressaindo sobre a alvura do tecido. Rômulo estava deitado, havia já recolocado o short e seu talhe esbelto, moreno, a atraía. Ela recostou-se, lânguida, deslizando sobre os travesseiros.
-          Saí da escola faz tempo. Fui ver a universidade, há uma aqui perto, na estrada, você já deve ter visto o prédio. Me senti uma estranha, achei pavoroso aqueles corredores. Meus pais exigem que eu faça alguma coisa, preferencialmente casar. É o que se espera de uma filha. Mas você já me imaginou com dois filhos, atendendo na barraca do meu marido, na feira, repetindo exatinho a vida da minha mãe? E depois, olha eu aqui na cama com você! Bom, no mínimo pode-se afirmar que não parece um projeto adequado. Então e se pintar uma coisa assim, como ser atriz, viajar, fazer carreira? Tem mais a ver, não é verdade? Mais a ver comigo, quero dizer.
             Ficaram em silêncio. Rômulo abraçou Cristiana. Como que entrevendo por entre obstáculos de treva e luz compreendeu intimamente que aquela necessidade de cuidado, de amparo, só podia ser satisfeita pelo corpo, no silêncio do abraço, na superação da distância pelo toque de pele sobre pele, do calor dos corpos unidos, na fusão do mesmo e do outro pelo simples estar como modo da existência recolocada na constituição fundamental de um “há” que era tudo, incluindo-os.
            Então eles desprenderam-se, como uma flor que abre suas pétalas projetando seus esporos. Ela se pôs de pé.
-          De qualquer modo – falou, encarando-o com um semblante aureolado pela sombra que se movia agora, através dela – vou ver no que é que dá. – seu tom pareceu de repente puramente impessoal e informativo, Rômulo não entendeu a transição. Em todo caso vestiu o jeans e aguardou que ela ressurgisse. Após o banho ela veio, com os cabelos molhados que esfregava vigorosamente na toalha e pousou um beijo de leve em seus lábios.
            Largou a toalha sobre a poltrona e entregou-se ao jogo com o espelho. Escovava os cabelos escuros jogando-os para frente e para trás. Dando-se por satisfeita olhou para ele e sorriu.
-          Deseje-me sorte!
           Rômulo abriu a porta no momento em que ela saía. Sem que ele esperasse por isso divisou a figura de Otávio que emergia por entre o vão das escadas.
-          Salve, salve! Como vai, senhorita...
-          Cristiana. – ela mesma completou, apresentando-se. Relanceou a expressão, novamente sorrindo, para Rômulo.
-          Tchau!
               Afastou-se enquanto Otávio entrava, franqueando o umbral.
-          Mas ela podia ter esperado ao menos que eu dissesse o meu nome... – ele comentou jocosamente insinuando, apenas pela entonação que usava, algum interesse que Cristiana, com sua juventude e beleza, deveria necessariamente despertar. Rômulo não se sentiu irritado com aquela demonstração, ritual dentro de um tipo de concepção de masculinidade. E mesmo a presença de Otávio não lhe pareceu tão odiosa. “Estou me acostumando...” Rômulo pensou,  com um misto de horror e complacência.
                Otávio se assentava esparramando-se no sofá, as pernas abertas, o talhe de algum modo sôfrego e ostensivo.
-          Vai começar, meu amigo. – ele anunciou, gravemente. Rômulo surpreendeu-se consigo mesmo pois a menção da palavra ‘amigo” por parte de Otávio, referindo-se obviamente a ele mesmo, não o chocou nem causou nenhuma estranheza. Inversamente, era como se Rômulo percebesse que podia separar o Otávio substancial, a pessoa cuja proximidade e presença de algum modo revelava uma vulnerabilidade comum e inata, e as práticas que prolongavam um sentido deturpado das coisas e que no entanto eram anteriores a ele.
               Rômulo não o absolvia intimamente mas tampouco o condenava. Estava ali naquele instante como se tudo se resumisse na sala do apartamento às três da tarde. Rômulo estendeu-lhe um copo de cerveja, vindo da cozinha anexa e esperando que ele continuasse.
-          Vai começar, a campanha, oficialmente. Temos que ter tudo preparado, não pode faltar nada, não pode escapar nenhum detalhe.
             Rômulo começou a entender.
-          A imprensa é importante, também. E como o restaurante é uma peça chave na articulação da campanha, você tem que se projetar mais, adquirir status, notabilidade... Combinei com o Langonni. Ele fará uma entrevista com você, tipo página inteira. Haverá também uma revista, você na capa, o dono do “Casa & Companhia” equivalendo a algo como “O homem do ano”. O lugar vai ferver! Nisso, é claro, agimos no sentido de ser impossível separar os sintagmas “ir ao Casa & Companhia” e  “votar no Manoel Augusto” – ele ostentou um meio sorriso sem cinismo aparente. Rômulo meneou a cabeça, incrédulo.
-          Mas por que eu faria uma coisa dessas? – ouviu-se perguntando e se regozijou com isso. Estava levantando a cabeça, não se deixaria barganhar.
-          E porque é que você não faria? Acredite, depois de uma coisa assim você está feito, pode arrumar qualquer negócio, se estabelecer em qualquer lugar. Eu sei que você tem escrúpulos.
                A este último comentário, Otávio lançou-lhe um olhar entre compreensivo e maroto, cúmplice, pretensamente cativante.
-          Mas o que é que você teria a perder? Nós, o partido, vamos ganhar de qualquer forma. Faremos o que quisermos, do nosso jeito, como sempre. Você  pode se dar bem  ou se ferrar, você escolhe.
-          Posso escolher não ter nada a ver com isso, Otávio.
                 Rômulo respondeu, cortante.
-          Não há ninguém em Feitoria que “não tenha nada a ver com isso”. Ou é por nós ou é contra nós, não tem meio termo, meu amigo.
                 A voz de Otávio se insinuava baixa, como vinho circulando na corrente do sangue e Rômulo não queria se deixar arrastar. No entanto por algum motivo hoje não conseguia não gostar dele, de todo.
                   O corte bem talhado do blusão, brilhando sobre um rosto cheio de decisão e controle, em cuja expressão não estava ausente um traço de genuína amizade pelo interlocutor, tudo isso o tornava de certo modo irresistível.
-          Gosto de você, Rômulo, não te quero mal. Talvez você não goste das coisas como são. Às vezes eu sinto em você um predestinado. Mas quero então que seja para o bem. Ao contrário daqueles que já o estão para o mal, como aquela maldita mulher.
                Rômulo sentiu o coração explodir em um ritmo subitamente desordenado.
-          Que mulher?
-          A mulher do Romeo. Está ferrada, meu amigo. Você sabe o que a imprensa daqui vai fazer dela? Tem idéia do que o serviço do Estado, a prefeitura, pode fazer, em termos de discriminação? Saúde, lazer, comércio, educação... Tudo na lista negra? E o Romeo? Você acha que ele poderá fazer qualquer coisa para evitar ou mudar isso?
-          O Romeo é um tradutor respeitado!
               Estava estupefato e não fazia nada para esconder seus sentimentos. Isso parecia deliciar Otávio.
-          Um tradutor, sim, e daí? Não controla nada, não sabe nada, a esta altura já deve estar se sentindo um completo estrangeiro na sua própria cidade natal. Ah, sim, mas ela tem uma saída. –  Otávio ria, cheio de sarcasmo. - - Uma mulher sempre pode se apaixonar, não pode? – encarava-o agora, de maneira pretensamente significativa e Rômulo recuou com espanto, assombrado.
-          E se fosse por você? – Otávio continuava, sem trégua, levando-o à loucura.
-          Isso não a livraria, porém. Afinal, simplória como é, pode morrer de paixão sem largar Romeo, a quem se sente eternamente ligada pelos laços da lealdade. E de jeito nenhum a perdoaríamos, de um modo ou de outro. Se ela está com Romeo, nos vingaremos por ter ele abandonado a filha de um correligionário. Se ela o abandonar, digamos, por você, nos vingaremos por ter ela traído um ex-correligionário, o próprio Romeo, a quem prontamente reintegraremos. Assim, você poderia reabilitá-lo, indiretamente, que tal? Mas ela não fará isso. Não tem forças. Então ela se apaixona e escapa por dentro. Vive uma fantasia, às vezes terrível, às vezes maravilhosa... E então? Está disposto a cometer uma boa ação?
            Rômulo levantou-se da poltrona, atordoado.
-          Você está louco, Otávio! Você é completamente insano...
-          Desumano? – Otávio projetava o torso para ele, sem perder a fleuma, usando as palavras como se portassem o estigma da verdade nua.
-          Não depende de mim, entende? Eu faço parte da máquina. Sou um relê da engrenagem. Que mais vou fazer? É o meu pai, é a minha gente! Já passamos da época em que estava na moda o filhinho idealista revoltado que joga a grana da família pela janela para gáudio dos ladrões e prostitutas. Isso aqui é a guerra, meu amigo. Nós ou eles. Não vou tirar dos meus para dar para os outros, os outros que se danem, e você pensa o quê? Que eles não fariam o mesmo se estivessem no meu lugar? Isso é a humanidade. A lei do mais forte, o mundo, o universo inteiro é assim.
               Não tinha o que responder. No íntimo sentia que não era assim, que não precisava ser assim.  Mas sabia ser inútil qualquer discussão agora, com Otávio.
-          Você podia ao menos não colaborar nessa covardia contra uma mulher... Uma mulher, Otávio. – Rômulo retorquiu apenas, debilmente, emocionado. O outro riu.
-          E você já está defendendo. – o riso se sobrepôs à fala e então ele prosseguiu. – Mas não sou eu, você não vê? Pessoalmente não tenho nada a ver com essa operação, nada que ver com essa mulher. Estou só te dizendo o que farão, e te falo isso porque sou seu amigo e porque eu sei, já vi acontecer com outras pessoas, conheço o procedimento mas não porque eu participe diretamente disso. Só não posso evitá-lo. Mas acho que você  ganhou a sorte grande, ela vai inventar você na fantasia de compensação que ela vai ter  que criar e quanto ao que te toca, você vai embarcar  na onda?  Não, que nada, você não precisa disso, nem dela nem de mim. Mas faça-a se apaixonar assim mesmo. No final, quando ganharmos a eleição e você estiver rico, conceituado, aí você resolve: casa com a Leda ou se manda de Feitoria, quem sabe, levando junto esse amor e uma mulher... – a gargalhada que se seguiu, paradoxalmente, nada tinha de zombeteira. Soava mais como alguém congratulando-se perante um espetáculo satisfatório.
              Rômulo observava, o olhar pousado nas beiradas do sorriso do outro, agitando-se agora à sua frente, novamente como um garoto trocista.
-          Não tem nada a ver, Otávio. Ela ama o Romeo. Você está dizendo coisas sem sentido.
               Otávio meneou a cabeça, recuperando-se das gargalhadas e encarando Rômulo com expressão amigável.
-          Não? Veremos, ou apenas teremos uma idéia, já que tudo se passará em silêncio. – pareceu por um instante que ele se entregaria novamente ao riso. Mas Otávio apenas tornou a menear a cabeça.
-          Por isso eu te digo, meu amigo. Gosto de você e por isso te dou este conselho. Pegue o que é seu, torne-se um empresário de sucesso. Depois dessa eleição você escolhe o seu caminho. Te garanto que nada impedirá a sua escolha. -  Otávio mergulhou o rosto no copo de cerveja e ficou ali, olhando, entre benigno e desafiador, para um Rômulo atônito.

IX 
         Olhava aquele outro sorridente a encará-lo envolto nas cores brilhantes do papel. Acostumar-se-ia a ver-se ou saber-se através das linhas dos jornais. Mas a princípio o que mais havia considerado notável fora o imparticipado de tudo, o quanto ele mesmo, o eu íntimo e familiar, nada tinha a ver com aquilo. Por exemplo, os pais. Não havia uma só referência na matéria que o havia por assim dizer introduzido naquele mundo dos famosos – como costumava dizer o Otávio – que os fizesse seus, tais como os conhecera. Eram citados de passagem, quase como acasos ou emblemas de uma prospecção acessória: “filho da pequena burguesia do Sudeste...”  E era só, quanto a isto, ele, o self-made-man.  Tampouco havia qualquer menção àquilo que ele considerava a marca mais peculiar à sua própria existência, os anos na estrada. “Acostumado a viajar e conhecer lugares e pessoas, o empresário Rômulo Alves adquiriu o faro das ocasiões e o gosto pelo improviso. Assim, soube o momento exato para transformar o velho casarão no Centro em um lugar tão surpreendente que consegue combinar as qualidades do moderno e do aconchegante”. Era tudo o que bastava, garantiram-lhe, para compor a imagem.
         Quanto às suas respostas às perguntas da entrevista, pareceram-lhe compostas e arranjadas por qualquer um que não ele. As frases eram secas, curtas, funcionais. Ele não era assim. Agora, quando pela manhã se preparava para a vista d’olhos costumeira nos jornais ou quando se propunha a folhear uma revista, algo dentro dele se posicionava leve, à distância, como a se debruçar por sobre, a ver como é que anda “aquele”, e “aquele” era, sem um termo que os fizesse coincidir, contudo, ele mesmo.
            Assim também como se o gesto houvesse germinado sozinho, por dentro, pegou-se espreitando a mulher do Romeo nas conferências do Lopes.
            Ela possuía um quê de inamistoso, selvagem, como se houvesse  posto deliberadamente à margem. Não havia como compreendê-la ao certo. O marido, pois coabitavam, pelo que se cochichava, como marido e mulher, plantava-se ao seu lado, parecendo muito grande, a robustez do torso dominando o espaço sobre cujas bordas ela se compenetrava.
          Parecia também nada ver a não ser à própria frente, o marido fazendo às vezes de intermediário entre o vazio e o mundo. As pessoas a evitavam. Ela às vezes exsudava tensão. Em meio ao silêncio costumeiro da assistência homogênea, seu vulto magro, os cabelos escuros, sua palidez, destoavam. Mas não era algo exterior, meramente circunscrito à aparência física. Era como um grito ou apelo, vindo do cerne do ser, que o levava a voltar-se para ela, a contemplá-la como a uma figura envolta em mistério, um imã que o atraía e incomodava aos demais.
           O isolamento de Romeo, cavado insidiosamente pelos correligionários do partido, tornava-se cada vez mais patente. Por motivos óbvios ele jamais visitara o restaurante. E havia boatos de todo o tipo correndo sobre ela. As pessoas pensavam que Rosângela possuía uma doença estranha e rara. Outros diziam que era tuberculosa.
             Ela o olhava, a ele, Rômulo, por vezes, por entre as conferências, com tamanha intensidade, ou ao menos assim lhe parecia, que ele temia uma voragem, o puro caos oculto no brilho do semblante que parecia vir, em ondas rítmicas e contínuas, de muito longe, ameaçando sobrepor-se a tudo.
          Era um turbilhão imóvel, quieto, silente. Uma força demolidora, uma chama consumindo-se a si mesma, que o arrastava, que o desejava, que fazia com que se sentisse cheio de indiferença, dúvida, escárnio, o fio de uma lâmina que se oferecia para cortar algo que pendia incomodamente mas que estava ali sem ser usada, uma esfinge que por vezes ele temia que o devorasse e no entanto era como se ela o trouxesse puro, ele mesmo devolvido ao eu sem cisão, completo, autêntico.
            Ao lado, Romeo nada percebia. Ainda que um universo se agitasse contra ele, permanecia calmo, brincalhão, afável, e as mulheres, mesmo as mais austeras, sorriam para ele coniventes ao ensejo de suas estudadas e meticulosas pilérias.
            Quanto ao Lopes, aceitava tudo e todos, ativo, dedicado exclusivamente à sua tarefa, disciplinado e sóbrio. Rômulo por  vezes temia, quase como se esperasse, que Rosângela explodisse, rompesse o fundo obscuro da comunidade hipócrita, se lançasse para ele, quebrasse o silêncio, assumisse uma vontade...
             Mas ela repetia invariavelmente os gestos algo desgraciosos, cumprimentando as pessoas sem simpatia, arranhando a superfície espessa que se corrugava à menor de suas tentativas por estabelecer contato. Quase ninguém lhe respondia. Ela então sentava-se, o Lopes principiava o seu discurso, e a verdadeira guerra irrompia no espaço, ela mergulhava por dentro da película, incendiava os rostos múltiplos que o aterrorizavam, surgia como lava, vento farfalhando as hastes gêmeas do bambuzal, irrompia os estratos sacrossantos com uma gargalhada louca, o sangue das vítimas escorria dos seus dentes, um sol âmbar-pálido chamejava em algum lugar por sobre o mundo, eles estavam correndo por sobre uma campina ocre, avermelhada, cintilante, escura...
            Alguém fazia uma pergunta, com voz contida. Nem esforço supremo ele se concentrava na voz. O Lopes respondendo levava-o a reapoderar-se do momento e então Rômulo reinstalava-se na sala, não sem olhá-la ainda, de relance, enquanto ela também o entrevia, assim, de relance, antes de voltar ao eterno olhar-para-a-frente-indiferente-vácuo.  Ele tinha a invariável impressão de que havia algo zombeteiro em seu semblante mas ele se proibia de deter-se nisso e com fervor reiniciava a atenção às luzes brancas e polidas da sala, misteriosamente mantidas assim na efetividade por obra e graça da fala continuada do que o Lopes queria expressar:

                             Há então três tipos de linha. A primeira, dura, operando na formação molar dos grandes recortes,  opera na convencionalidade instituída, constitui as ações de estado, a compartimentalização dos deveres. A segunda, fina e flexível, opera no nível molecular, é uma verdadeira potência  de espalhamento, alianças e contágios, sem  contar com  fechamento ou totalização mas se fazendo  por proliferação, invasão, mutação... Maio de 68 é uma pura operação de molecularidade mas também o nazismo o foi... A terceira linha é a de fuga. É a mais perigosa, a única talvez que comporte nela mesma o perigo real. A linha de fuga é aquela que pode se tornar suicidária, que oferece o escape mas que não pára de gerar a possibilidade de se transformar em uma pura linha de desterritorialização absoluta, de fim, de destruição...”

                  Depois as pessoas relaxavam e principiavam a sorrir, umas para as outras, conversando enquanto alguns se aproximavam do Lopes. Rômulo esforçava-se para não ceder a voltar-se, a encará-la de frente, interpelá-la, sacudindo-a daquele transe de torpor.
            Ela postava-se como estátua sorridente, impassível, de pé, ao lado de Romeo que palestrava  com as pessoas que se juntavam mais em torno do Rubens e do Nélio.        
              Leda segurou-lhe o braço e Rômulo aceitou a morna pressão do corpo  que o confortava e protegia. Caminharam juntos pelo corredor, buscando o saguão em meio a um grupo de amigos de Leda, na maioria mulheres que hoje ostentavam uma expressão que a ele pareceu grotesca, cuidadosamente debruada com sorrisos sarcásticos como se compartilhassem algo entre elas. Chegando ao salão principal o grupo se dispersou e Leda voltou-se para ele com vivacidade, falando de um modo inusual, como se partilhasse indevidamente algo oculto:
-          Não sei como têm coragem...
-          Quem? – Rômulo comentou de modo superficial. Não sabia porque mas algo o inquietava e ele se punha a olhar por sobre a multidão compactada no saguão, inquirindo, sem divisar exatamente o quê.
-          Aquela mulher e o Romeo! – Explodiu Leda, em um cicio. – Ninguém os suporta aqui, são uma afronta! – depois riu, à socapa, um tanto maldosamente. – Você reparou como ela estava vestida? Tudo colado, aderindo à pele... Um horror!
                          Rômulo nada respondeu pois estava agora  pasmo. Em meio ao aglomerado uma dupla de moças se movia com decisão, aproximando-se e ele pôde ver claramente ser uma delas Cristiana. Algo o fez avançar. Não queria de modo algum estar novamente entre cristiana e Leda no tumulto do ambiente. 
                      Leda já ia protestar mas ele a fez calar com uma observação discreta de que o esperasse. Ela estacou por um instante, parecendo surpresa ou algo contrariada mas logo uma conhecida a saudou e ficaram ali conversando enquanto Rômulo evoluía pelo saguão. Cristiana, notando os seus movimentos, o seguiu, assim como a outra moça que o acompanhava. Logo transpunham a entrada e encontravam-se os três, em frente ao clube, na escadaria de acesso.
-          Rômulo, puxa, que dificuldade para falar com você! – ela sorriu, beijando-o no rosto. – Esta é a Nancy, minha amiga. – A moça, cabelos soltos, ruivos, encaracolados, o cumprimentou. Ambas vestiam saias amplas, camisetas de algodão cru e coletes estampados.
-          O que houve, Cristiana? Veio até aqui só para falar comigo? – ele perguntou, com certa preocupação. Nunca havia imaginado vê-la no Clube e ainda que nada o impedisse, parecia totalmente incoerente que ela o freqüentasse.
-          Mais ou menos. Queríamos ver essa famosa aula do Lopes. – as duas se entreolharam por entre sorrisos cúmplices – Mas parece que chegamos tarde. - ela tornou a olhar para ele. – Rômulo, eu tenho uma coisa para te dizer. Estou morando com a Nancy.
                   Ele pareceu não ter compreendido.
-          Por quê? Aconteceu alguma coisa?
                    Cristiana riu.
-          Não, que idéia! Tudo bem, é que meu pai andava implicando comigo, com as minhas roupas, meus hábitos ou a falta deles... Minha profissão... – Ela suspirou como se saltasse assim sobre o abismo que deixara para trás.
-          Olha, o que eu quero te dizer é que hoje, lá pelas dez, por aí, vai ter uma festinha lá em casa, no apartamento... Eu faço questão que você vá. Está aqui o endereço. – Ela estendeu um pedaço de papel. Novamente o beijou.
-          Não falte, heim? – Ela acrescentou, ainda sorrindo, afastando-se. Rômulo voltou ao saguão, pois Leda o esperava para que a levasse em casa.

           X
                   Feitoria estendendo-se, dobrando o espaço, surgindo e continuando, renascendo incessante sob as luzes que a sobrelevavam em meio ao manto noturno. Agora as bandeirolas da campanha eleitoral iluminavam-se repentinas sob os faróis, sucedendo-se interminavelmente.
-          A campanha está pegando fogo! – comentavam
-          Rubinho não tem chance. – outros meneavam a cabeça.
         A estação das chuvas avizinhava-se. Todos sofriam aquela expectativa úmida de algo que parecia conter uma promessa mas que pairava sobre todos como a calmaria mais remota no meio de um oceano parado.

-    Romeo... – Rosângela estendia as mãos, tocando levemente o braço do homem que se concentrava em guiar o automóvel.
-          O que é? – Ele responde, absorto na escuridão que circunda o universo.
         Ela não disse nada, apenas buscando aninhar-se nele do modo mais conveniente sem atrapalhar os movimentos que fazia, dirigindo. Romeo não se mostrou receptivo. Ela não sabia porque mas os pensamentos dele pareciam tão distantes, o semblante tão impenetrável...
         Rosângela sentiu o frio entrando pela janela fazendo-a estremecer ligeiramente. Desistiu  de procurar  no corpo dele o abrigo de que tanto necessitava agora. Endireitou o torso recostando-se no assento, muito ereta. Sentia-se tão só, tão alheia ao mundo... Freqüentava lugares povoados  por  pessoas que se mostravam fechadas para ela, opacas e indiferentes. Tinha a impressão de que a vigiavam, de que cochichavam a seu respeito. Tudo parecia levá-la a um modo de ser que não sentia como o seu, comum, que não refletia os próprios gestos como derivando dela mesma.
         O caro parou no sinal e inesperadamente Romeo a beijou de modo provocante, algo sensual.
-          Você me ama? Me deseja?
           Ele perguntou, com ardor.
-          Sim, eu te amo.
            Ele riu, de um modo rouco, excitado.
-          E dos meus amigos? Quem você considera atraente?
            Rosângela recuou, um tanto chocada.
-          Ora, eu amo você...
-          Sei, tudo bem, mas mesmo  assim... As pessoas apreciam uns aos outros, as mulheres e os homens se vêem e uns acham que esse é mais charmoso do que aquele, outros já consideram de modo  oposto, é uma questão de gosto, é uma coisa normal...
                      Ela não conseguia acompanhar o argumento dele. Parecia-lhe tão sem sentido aquela conversa... Algo perigoso, que mexia com seus nervos e a punha em guarda, defendendo-se. Ficou em silêncio, aguardando.
-          E então? Quem você considera mais atraente?
-          Você. – respondeu, secamente. Ele tornou a rir, daquele modo que a exasperava.
-          Entre os meus amigos... Pode falar, não tenha medo, achar alguém charmoso não é pecado nenhum, é uma coisa normal, estou te dizendo... Você precisa se soltar mais, se desinibir, aceitar as coisas, as pessoas...  E então? Quem seria? Qual a sua opinião?
-          O Rômulo. – Ela declarou, quase com raiva. Notou então que a expressão de Romeo se fechava um pouco, ostentando algum descrédito ou desilusão.
-          Rômulo, sempre o Rômulo... As mulheres andam todas olhando para ele, e sabe por quê? Por causa da imprensa, dos jornais, das revistas. Aposto que leu sobre ele, também, não foi? – havia algo amargo na voz de Romeo.
-          Li. – Ela falou, como que desculpando-se. Sabia que Romeo renunciara a determinadas opções  por seu amor. Agora algo se havia interposto entre eles no exíguo espaço do automóvel, parecendo restar apenas o silêncio.
             Mas para ela o silêncio parecia ser feito de chamas. Sem saber, ou talvez com alguma intenção proposital, Romeo a havia lançado no tumulto dos seus próprios sentimentos contraditórios e sentia-se esvaindo com vergonha de si mesma. Rômulo, para ela, era o mistério completo, a noite dos tempos, o insondável abissal. Às vezes, enquanto o Lopes discorria, ela o olhava de relance, era impossível não ver, e era como se Rômulo pertencesse como ela a uma realidade mais profunda, a qual os dois deveriam ter partilhado em alguma era inacessível que  no entanto continha intacta, o segredo íntimo daquilo que eles realmente eram, da inalienável essência... Mas esta  percepção lhe parecia como sendo perfeitamente alucinatória, se ele era completamente desconhecido, não havia nem mesmo uma palavra comum que pudessem impunemente  trocar a mais de uma saudação ligeira e casual.
          E Romeo era o seu marido, ela era devotada a ele, não pretendia enganá-lo. Assim, sentia-se sem apoio e lançada no deserto interior daqueles fatos sem laço que compunham o seu cotidiano atual em Feitoria.
            Romeo diminuiu a velocidade, suavemente. Estavam chegando em casa e após as manobras habituais para estacionar, antes que apeassem, ele exibiu um sorriso simpático e conciliador que tornou mais acolhedora, por alguns instantes, a luz fraca no interior do veículo.
                                                                                                 §§§
                Leda o beijou, ostensivamente. Rômulo acompanhou o ímpeto dela, deixando as mãos deslizarem sensualmente pelas bordas do vestido, acompanhando a curva sinuosa das costas. Leda suspirou, ansiando por algo mais. Ela era meiga e macia, Rômulo sentia como se pudesse dobrá-la e desdobrá-la, como se ela possuísse uma maleabilidade dócil, que se amoldava aos gestos dele, correspondendo, presionando, pedindo, entregando, abrindo silenciosamente o caminho para algo que devia vir, que devia ser preparado aos poucos, de um modo tranqüilo mas forte e inexorável. Contudo ela sempre se interrompia como se o momento ainda não houvesse chegado, como se houvesse ainda algo impróprio, não dado.
-          Leda... – ele sussurrou, quase sem poder acreditar que ela estivesse assim se detendo, logo naquele instante, logo naquele ímpeto de desejo tão intenso.
-          Rômulo, por favor... – ela procurava reordenar o ritmo da respiração, ajeitava as alças do vestido, o cabelo. Olhou para ele e então o beijou novamente, de leve, na boca, logo depois abrindo a porta.
-          Amanhã a gente se vê. – desapareceu na noite e Rômulo guiou o automóvel, voltando ao centro da cidade. Pensava em Leda. Compreendia a atitude dela, moça criada sem mãe, tentando manter aquilo que julgava ser a sua integridade, lutando contra os seus próprios sentimentos mais verdadeiros, a urgência do corpo que ansiava por ele, e talvez mesmo ela o amasse. Mas não faria nada de maneira impulsiva, ele sabia.
           
                  Rômulo observava apenas, o desenrolar do conflito refletindo-se nos gestos dela. Parecia que o resultado ainda estava pendente, que ela mesma não sabia se resistiria ou não até que ele se resolvesse a dar o passo decisivo e casar. A idéia flutuava à sua frente e o divertia um pouco. Não pensava seriamente nisso. Mas Leda era tão firme naquilo em que parecia crer... E ela agia decididamente como se aquilo fosse mesmo uma realidade a se confirmar.
                 O pensamento esvaiu-se, como sempre que ele se detinha no assunto. Absorveu-se por completo na atividade de guiar o carro e logo mais tarde estava tocando a campainha, no endereço fornecido por Cristiana.
                A porta se abriu como que deixando liberar o som de música, riso e vozes, que ele entreouvia abafadamente desde o corredor. Uma moça de cabelos curtos, excessivamente maquiada, com os olhos ornados pela sombra metálica azul, sorriu-lhe franqueando a entrada. Pessoas se misturavam no espaço pequeno, claro e simpático do apartamento. Cristiana veio ao seu encontro parecendo encantada por vê-lo ali.
-          Rômulo! E aí, gato? Entra, vem conhecer o pessoal. – a música não estava a uma altura excessiva e Rômulo pôde compreender o que ela dizia sem esforço algum. As pessoas pareciam à vontade, querendo conversar e beber, animadas. Havia um sofá, algumas cadeiras e almofadões espalhados pela sala. No quarto contíguo ele percebeu que também se agrupavam convidados em atitude jovial. Após ser apresentado a alguns amigos de Cristiana, Rômulo sentou-se, copo de vinho na mão, no sofá, onde para sua surpresa, estavam também o Rubens e o Nélio.
-          Rômulo, grande figura, velho... – Nélio saudou-o, um tanto exaltado. – Apresento-lhe Sir John Peblenton, inglês, naturalizado belga, vivendo atualmente nos EUA, por ora em trânsito pela América Latina... – Rômulo deparou com um rosto simpático, loiro, bronzeado, que lhe sorria amavelmente.
-          Muito prazer. – Nélio fazia as vezes de intérprete pois Sir John não  falava  português. Enquanto bebericavam trocando amenidades Rômulo se deu conta de como estava cansado.
            Ali, no meio daquelas pessoas alegres, descompromissadas e afetuosas, podia sentir-se finalmente em casa. Era como se viesse sustentando por longo tempo uma farsa, um  papel falso, um peso demasiado que lhe fora  inapelavelmente imposto. Agora sentia-se lentamente relaxando, integrando-se à alegria do ambiente.
-          E então, que lhe parece a campanha? – perguntou Nélio. À palavra “campanha” Sir John voltou-se como se compreendesse o tema da conversa e fez uma pergunta que Nélio traduziu em seguida:
-          Ele quer saber seu prognóstico, quer que você se sinta à vontade para expressar a sua opinião sincera.
-          Mas até aqui vocês não param com esse assunto? – atalhou zombeteiro o Rubens, como se nada tivesse que a ver com aquilo. Rômulo sorriu. Não estava habituado a ver o Rubens como um tipo jocoso e a transição lhe pareceu agradável.
-          Se me permite, Rubens, há algo que eu queria mesmo te dizer. Sabe aquela sua classificação dos tipos revolucionários? Pensando naquilo não me parece assim tão simples. – voltando-se então a John Peblenton, que observava tudo com muito interesse, Rômulo completou:
-          Não creio que sonhos se tornem realidade assim, gratuitamente. – pronunciar-se com toda liberdade o fez sentir extremamente bem, como se experimentasse uma súbita expansão. As janelas do apartamento recebiam a renovação da atmosfera, o vento rodopiava pelos cantos, as vozes, os risos, tudo estava brilhando na novidade daquele momento absoluto.
                     Suas palavras lhe soaram autênticas, todo-ele-mesmo, e ao passo que sentia a fusão com o lugar  festivo como o catalisador daquele processo fortalecedor de seu ser mais singular, a lembrança do  vulto de Rosângela atravessou o espaço concentrando o instante do tempo como se possuísse o poder de abrir alguma porta que o levava ao mais íntimo do seu ser próprio onde não havia nenhum reflexo, nenhuma duplicação, onde ele emergia por inteiro, original, exclusivo, em toda a sua vigorosa plenitude.
               A crueza da presença dela o chocou porém, sobremaneira, e ele se viu nu, completo, em alguma região insólita do ser repentinamente deslocado, novamente desconhecido. Logo se esforçou por recompor-se, retornar  à  integração ao presente, à festa. Procurou com o olhar a silhueta de Cristiana. Ela estava  em uma pequenina roda de  pessoas que à sua visão surgiam como dotadas de extrema felicidade e encanto.
-          Não crê naquilo que julga impossível... – Nelio comentou, com um acento na voz que era ao mesmo tempo conclusivo e vago.
-          He does not believe in what he trinks it’s impossible. – traduziu e Sir John riu quase alto, como se houvessem lhe oferecido uma piada hilariante. Rubens e ele se entreolhavam com certa cumplicidade. Rômulo voltou a atenção aos seus amigos:
-          E quanto a você, Sir John? Está otimista?
-          Abstenho-me de  prognósticos ainda que me interesse muito por aquilo que as pessoas pensam. Lido com resultados e não há porquê antecipar o que certamente virá.  – tudo aquilo devidamente traduzido por Nélio pareceu a Rômulo muito enigmático. Mas havia algo no estrangeiro que atraía a sua curiosidade avivando o interesse na conversa.
-          Está gostando do país? Já esteve aqui antes?
-          Adoro este lugar. – ele replicou, sem no entanto responder  de todo àquilo que Rômulo indagava. Isto levou o rapaz a debruçar-se mais detidamente sobre a questão. Quem era Sir John? O que fazia ali? Porque parecia tão evasivo?
-          Está viajando a negócios?
             O homem loiro deliciou-se com aquilo, ou ao menos assim sugeria a sua expressão francamente sorridente.
-          Sempre estamos a negócios, de um  modo ou de outro.
-          E a que se dedica? O que o ocupa no momento aqui em Feitoria?
            Ele lançou-lhe uma expressão algo irônica.
-          Não posso dizer. – Nélio traduziu.
             Neste  momento Cristiana aproximou-se acompanhada por duas outras moças. Sentou-se em um pequeno banco, perto de Rômulo.
-          E então, meninos, divertindo-se? – todos gesticularam, afirmativamente.
-          Meus parabéns, Cristiana. A festa está ótima. É uma comemoração, não é? – Nelio falou.
-          Sim. Estamos inaugurando o espaço, o apartamento, mas também estou brindando à minha estréia como atriz.
             Fazia já algumas semanas que Cristiana principiara a ensaiar com a equipe de Jairo Gonçalvez. Desde então ela e Rômulo não haviam estado a sós e por isso ele  não estava totalmente inteirado dos detalhes daquilo que ela deveria estar vivenciando como uma fantástica novidade.
-          E então, Cristiana, está gostando? – Perguntou.
-          Muito! – ela parecia inebriada. – Eu jamais poderia imaginar o quando o teatro tem a ver comigo! E o Jairo Gonçalvez é um “ senhor “ profissional.
            Os homens bebericavam o vinho, particularmente satisfeitos. A jovem os deliciava com suas maneiras algo esfuziantes, alegres, muito agradáveis, e sua beleza serena, tranqüilizadora.
-          Mas eu não consigo entender a escolha do Jairo para o seu papel, Cristiana. – Rubens atalhou, pensativo.
-          Quem você vai ser? – Rômulo perguntou.
-          Jocasta. – ela respondeu, com certo acento triunfante na voz. Eles riram. Sir John, que parecia intuir algo da conversa, já que não podia acompanhá-la completamente devido ao seu desconhecimento da língua, comentou, no entanto, como se houvesse compreendido o essencial.
-          She seems more like an Antigone.
-          Exactly!  -  Rubens completou, como que dando a entender que apreciava imensamente a acurácia do outro.
               Cristiana umedeceu os lábios com o vinho, fazendo uma pausa, para logo explicar, longamente:
-          Nem preciso dizer que adorei ter sido escolhida para o papel, pois dentre os femininos é o mais importante neste momento da trajetória do Édipo sendo que Antígone só virá a ter relevo no instante posterior, após o ciclo palaciano de Jocasta. O Jairo não poupou comentários sobre essa escolha. Ele mencionou isso em uma entrevista que eu li, reli e decorei. Minha atuação terá algo de simbólico. A peça será representada em Feitoria, a alta cultura apresentando-se a um público despreparado para ela. Mas Jairo teoriza que um verdadeiro clássico comporta um jogo com arquétipos, tipos ou situações fundamentais que engajarão e comoverão qualquer pessoa, que sentirá a empatia com o que vê. Assim, eu, nascendo e crescendo em Feitoria, produto mais legítimo do lugar, representando Jocasta, simbolizo aquilo que Jairo vê na personagem. Jocasta é a origem, a terra natal, o solo grego, a mãe, o cerne, o núcleo, a gens. Mas o destino helênico é o mar, a expansão, a hybris seria o atavismo, a recusa da partida, o apego demasiado à própria terra que é interdita ao herói grego. Vejam a contradição: para permanecer fiel à origem grega, para não se confundir com o fechamento do tipo oriental, o herói tem que renunciar ao lugar de origem, ele precisamente não pode esposá-la porque ele representa o ideal da expansão, da conquista de colônias, do comércio, da mobilidade marítima. Assim o “casar com a  mãe” de Édipo, é na verdade o fundamentar-se no  solo pátrio, o que lhe é proibido. E lhe é proibido devido ao apelo bem grego da recusa da autoridade imperial de tipo oriental que se identifica com a terra, personificando-a, como é o caso do faraó. Édipo quereria encarnar, ou tipifica, o desejo inconsciente de encarnar, esse ideal autóctone, esse tipo de autoridade telúrica.  Já transposto ao público de Feitoria o tema da terra natal interdita terá tudo a ver com a questão do  êxodo rural, da modernização agrícola do velho anseio pela reforma agrária, a  hybris do nosso tempo pela qual tanta gente pagou com a vida... Édipo é o exílio, o “nunca mais pisar de volta o seu país natal”. Depois, a peça alcançando sucesso, nas outras cidades o apelo ecoará a partir dessa estréia  aqui, entendem?
            Eles acompanhavam enquanto ela os agraciava com sua juventude. A noite os envolvia na suavidade acetinada, vaporosa e lenta, a festa evoluía, as intenções pareciam encontrar uma fusão extra-corpórea que levava o interior ao mais profundo bem-estar. A moça acompanhava os convidados através do umbral noturno guiando-os a um amanhecer feliz. Depois que todos já se haviam despedido, Cristiana e Nancy se viram a sós, satisfeitas com a reunião pois todos mostravam-se incontestavelmente gratos.
          Cristiana lançou-se à delícia do banho, o vigor da água renovando suas forças, aguçando-lhe os sentidos. Desejou estar com Rômulo, sentir a máscula intensidade dele envolvendo-a, acariciando-a. Sorriu consigo mesma. Ele estava tão belo na festa... Recordou o modo atento com que ele ouvia o seu discorrer sobre as idéias de Jairo Gonçalvez. Ah, o Jairo Gonçalvez... O pensamento dela modulou-se insensivelmente e Cristiana pensou no diretor.
          Ele a intrigava, não o compreendia. Parecia mover-se em outro nível de pensamentos e princípios que lhe escapavam. Certamente não pertencia ao círculo possível de convidados a uma reunião como aquela, descontraída e informal. E a mulher dele, a Norah Sanchez? Enquanto vestia a camisola e se recostava no silêncio do quarto mergulhado na obscuridade, Cristiana experimentava a estupefação mais genuína. Como podiam chamar aquilo de casamento? Hospedados no melhor hotel da cidade, Jairo Gonçalvez e a mulher ocupavam quartos separados em andares distintos! Algumas das moças que integravam a equipe dormiam em peças mais próximas à dele do que a própria esposa!
                Cristiana recordava-se agora daquilo que jamais contaria a ninguém, aquele incidente tão banal, aparentemente sem nada mais do que a pura trivialidade e que no entanto marcara-lhe singularmente de modo que sempre que se encontrava só e mergulhava em seus próprios pensamentos, desde então, a lembrança voltava e a cena se recompunha, com impressionante nitidez.
                Naquele dia em que saíra do apartamento de Rômulo  para encontrar-se com Jairo Gonçalvez e a equipe que deveria àquela hora estar ensaiando no teatro da cidade, ela não tinha a menor idéia de como seria recebida. Jairo porém pareceu lembrar-se dela e a cumprimentou.
-          Olá menina, você é a amiga da Leda, não? Falamos de você por telefone, ela me disse que deveria vir.
               Cristiana não se surpreendeu com o comentário dele. Ainda na festa de inauguração do restaurante de Rômulo, após o anúncio do noivado registrado pelo repórter, Leda havia sido extremamente amável com ela, estando convencida de que tudo o que Cristiana mais queria na vida era ser atriz, coisa que jamais havia passado por sua mente até o momento em que fora apresentada a Jairo Gonçalvez. Mas deixou que a outra pensasse assim. Que lhe importava? Sentia-se vazia e decepcionada por causa do anúncio de noivado de Rômulo e Leda.
            Agora Jairo dava a entender que ela se havia empenhado por Cristiana. Pareceu-lhe irônico vir a saber daquilo naquele momento em que justamente estava vindo do apartamento de Rômulo. Mas descartou as considerações sobre o caso, concentrando-se na conversa com Jairo. Esperava que ele a submetesse a perguntas difíceis, ou que a testasse no palco, de algum modo. Porém ele apenas a fez sentar próximo ao foco onde pessoas se juntavam numa espécie de dança cujo sentido permaneceu oculto.
            Ele sentou-se à sua frente e por alguns instantes apenas ficou ali, olhando e sorrindo. Então perguntou, surpreendendo-a.
-          Aquele que acompanha a dama é o cavaleiro ou o cavalheiro?
          Ele exagerava na oposição dos fonemas como que para marcar exatamente aquilo que queria que ela considerasse. Cristiana repentinamente sentiu-se deslocada, como que em um novo espaço, uma espécie de vácuo intenso, onde só havia o raciocínio mais vazio e seco, e ela, quase que inconscientemente ouviu-se dizer:
-          Cavaleiro é o que tem o cavalo, cavalheiro é o que acompanha a dama...
          O rosto de Jairo Gonçalvez se iluminou com o sorriso clichê que o fazia tão familiar ao público de todo o país.
-          Muito bem! – depois o silêncio. Ele se levantou e a deixou ali. Foi até o palco, gesticulou, deu instruções, corrigiu, observou, pela tarde inteira, até que reaproximou-se dizendo apenas que Cristiana voltasse na manhã seguinte.
            Mas porque aquilo a intrigava tanto? Sim, era insólito, mas exatamente por quê? Respondera certo? Mas então estava sempre desejando ardentemente consultar uma gramática. Antes de adormecer pensou, de modo um pouco infantil,  que perguntaria a Rômulo se ele possuía alguma.

    XI

         O restaurante refletia suas luzes cálidas ao anoitecer, criando um ambiente acolhedor e tranqüilo. Rômulo  saiu, deixando-o com os empregados e dispensou o automóvel, preferindo caminhar. Feitoria àquela hora parecia um sonho suspenso no vazio do mundo, o céu muito alto, as ruazinhas do centro deixando correr o vento solto e suave, as pessoas caminhando, caminhando...
          Ele adorava misturar-se à multidão. Os transeuntes, com sua incrível pluralidade e multimorfismo, semelhavam possuir o poder da transmutação do peso em leveza, da confusa mistura de idéia e anseios em um silêncio terno, uma compreensão imanente. Rômulo sentia a necessidade de algo assim, pois desde que a imagem de Rosângela se havia presentificado nele em  uma intensidade tal que era como se equivalesse à sua materialidade mesma, no meio da festinha de Cristiana, uma angústia fina se havia instalado, uma urgência por algo que ele sabia ser remoto, um querer que só queria não querer mas que era inútil, pois queria, desejava, precisava entender aquela mulher e seu olhar silencioso, seus modos estranhos, o impacto que causava apenas por se encontrarem ambos, por vezes, em um mesmo espaço.
                Rômulo não se interessava por ela. Rosângela pertencia a Romeo. Jamais pensaria em aproximar-se dela e sentia algo que era quase agressivo ao lembrar. Por quem lhe tomavam, afinal? Otávio e suas insinuações deletérias não desvirtuariam o cerne de si mesmo. Ponto final.
                Mas o cerne de si mesmo, ele sabia, lhe fora como que devolvido,  quando já lhe parecia perdido, por Rosângela e sua incrível atividade imóvel, secreta, inatingível, unicamente concebível por ele e para ele, o que costumava ter lugar na aula do Lopes daquele modo imperceptível que se veiculava pelo simples ver. E tudo o que desejava agora era vê-la.
               Atordoado pela intensidade daquele desejo, buscou a visão do presente, fugindo daquela contradição e da fixação compulsiva que o arrastava para dentro da lembrança dela, olhando ao redor, demorando-se na caminhada a contemplar a luminosidade aureolada da noite de luar, os outros que caminhavam também, de certa forma com ele, os objetos mais variados que repousavam, oferecendo-se, nas vitrines e balcões...
              Deu-se conta de que se atrasava. Acertou o rumo ladeando uma ruela que conduzia sem desvios ao Clube de Conferências, sem conseguir evitar a ansiedade à idéia de que de algum modo ela estaria esperando por ele.
              O salão do Clube encontrava-se estranhamente vazio. Curiosamente uma figura solitária projetava-se na amplidão assustadora do lugar despovoado. Era Otávio. Parecia como se à espera de Rômulo.
-          Olá! Quem é vivo sempre aparece. Onde esteve, rapaz?
           Rômulo experimentou novamente a ambigüidade de seus sentimentos em relação a Otávio. Não o aprovava de modo algum, a concepção que ele tinha das coisas o enojava, mas havia algo nele, em suas maneiras, que saltavam por sobre a própria condição de seus valores deturpados, de suas ordenações ocas. Rômulo não saberia defini-lo mas isto se revelava, por exemplo, no interesse que o filho do senhor Saulo revelava pelas aulas do Lopes, cuja orientação mais óbvia se afastava tantos daqueles esquemas corruptos de dominação.  
-          Andando por aí. – Rômulo respondeu, vagamente.
          Otávio riu, meneando a cabeça. Punham-se ambos em marcha, adentrando o corredor para alcançar a sala em que Lopes palestrava. Com voz irônica, Otávio falou:
-          Andando?  Ah, sei... Pois é. Quer saber como é que vai ser a moda em Feitoria na próxima estação? É só observar a mulher do Romeo. Será o inverso exato. Se ela for magra, o reino será das rechonchudas, se for gorda, viva a magreza. Se for morena, sorte das louras, se for loura, só se valorizará as morenas. O feitio das roupas será o que menos lhe favorecer, etc. etc. mas... Que pena... Hoje você não poderá se dedicar a uma tão interessante observação porque ela não veio.
            Aturdido Rômulo estacou.  O olhar de Otávio resvalava à loucura quando ele completou:
-          Está doente, de cama, com febre, talvez não resista, e quando ela finalmente se dispuser a procurar um hospital uma equipe nossa já estará lá, esperando especialmente por ela...
            Horrorizado, Rômulo estreitou a expressão na direção do outro.
-          Está mentindo! Como sabe disso?
         Otávio deu de ombros, acendendo um cigarro, com um jeito que se havia tornado agora surpreendentemente absorto.
-          Eles sabem... Sabem tudo... Não tenho culpa disso, Rômulo. Se eu pudesse fazer alguma coisa, às vezes fico pensando se não é que eu faria...
              Rômulo apressou-se a deixá-lo ali, fumando, enquanto se dirigia à sala do Lopes como a um refúgio em meio a uma tempestade. Otávio alteou a voz.
-          Espere, tenho mais uma coisa para te falar!
               O som das palavras escoaram, rolando  na vacuidade, lentamente, enquanto Rômulo, semelhando não ouvir, adentrava o corredor e franqueava com certa brusquidão o umbral da sala, buscando acomodar-se em um dos parcos assentos vagos.
            Esperava que Otávio estivesse mentindo, blefando, mas efetivamente Rosângela não se encontrava ali. Leda, já acomodada, o saudou discretamente.
           “ Frege. Imaginem uma vida devotada a uma causa. E Frege devotou-se a isso, a reduzir toda matemática à lógica. Então Frege consegue. Ele publica a chave teórica que torna a lógica o fundamento último. Todos comemoram. Era o que se buscava há tanto tempo... Russel estuda a  obra. A princípio a aprova. Mas a seguir, quando a repercussão do feito atinge o cume, Russel objeta. E sua objeção é fatal. A teoria de Frege não se sustenta.”
          O clima na sala é tão concentrado que Rômulo tem a impressão de que poderia tocar o sentimento único das pessoas reunidas, expectantes. Mas havia algo mais que se tornava gradualmente mais sublime sem que Rômulo pudesse determinar o quê.
          “ Mas Frege não deixa de ser grande, de ter ensinado tanto, de trazer tantas noções úteis. Assim, meus amigos, perder, ganhar, são conceitos estereotipados, na realidade, equívocos, relativos. Aqueles que mercadejam com o sentido na tentativa de fabricar chavões, versões das coisas fechadas na estreiteza de pseudo valores tolos, cínicos e pueris, costumam se utilizar muito deste tipo de comparação. Mas somos nós que devemos determinar o sentido naquilo que se refere a nós mesmos, conforme a conjunção de nossos afetos. Frege buscou um resultado talvez impossível. Mas a busca o levou muito acima dos que  fecharam suas escolhas em circuitos prévios.”

              Lopes calou-se.  Todos estavam em suspenso, num lance que os constituía como um corpo coletivo penetrado pela comoção. Ele se levantou e deixou a sala. Sem entender, Rômulo perscrutou ao redor. As pessoas se levantavam e saíam, lentamente, como se esperassem já por tudo aquilo, movimentando-se com atitudes ponderadas. Leda afastou-se com elas, olhando-o e fazendo-o compreender que o esperava no corredor enquanto ele se surpreendia com alguém tocando-lhe de leve o braço.
-          Era isso que eu queria te dizer, Rômulo. O Lopes abandonou o Clube, viaja hoje para outro país.
            Rômulo ficou ali, olhando para Otávio enquanto a sala se esvaziava por completo. Um lampejo de compreensão pura o assomou:
-          Por quê? O que vocês tem a ver com  isso, Otávio?
              O outro sentou em uma cadeira vaga, ao seu lado. Olhou para cima, suspirando, como se estivesse, ele também, decepcionado e tenso.
-          Eu fiz o que pude para evitar, Rômulo. Mas o Manoel Augusto odeia o Lopes. Parece que no passado o Lopes o ridicularizou ou ao menos ele se sentiu assim. Mas a verdade  é que tudo o que o Lopes afirma é contrário ao que o Manoel pensa. Você sabe que o Manoel é muito religioso? Pare ele o Lopes é um distúrbio, uma aberração ou uma ameaça.
-          Mas o que foi que o Manoel fez? Como é que ele excluiu o Lopes?
              Otávio estava novamente ocupado em acender um cigarro, mas respondeu:
-          Negociou. O Clube fechou as portas. Foi incluído no projeto de obras, no meu projeto, lembra? Só que durante a campanha esse projeto devia funcionar como promessa para depois da eleição. Como é claro que o Manoel Augusto vai ganhar, e como ele é títere do meu pai, eu pensei que o Lopes estava garantido até lá e depois, com a obra em andamento, o Manoel precisando de dinheiro, meu pai intermediando os financeamentos, então eu daria um jeito, o Lopes seria mantido... Mas o Manoel quebrou o telhado de vidro, percebe? Com isso quer que as pessoas o vejam como um candidato mais independente, não um mero títere, como alguém capaz de botar pra quebrar, passar por cima, por mais consagrado que seja... Fechou o Clube até começarem as obras depois das eleições.
-          O Manoel Augusto iconoclasta? Ridículo!
-          Mas é nisso que ele está apostando. Os conservadores o aprovam, claro. Você sabe que uma ala vai continuar funcionando desde agora e mesmo durante as obras, exclusivamente para encontro dos religiosos da igreja do Manoel?
              Rômulo se deixou dominar por uma onda de ressentimento:
-          E você, Otávio? Vai continuar colaborando com uma coisa dessas?
-          Já vi coisas piores, Rômulo.
            Otávio tragou longamente, contrafeito.
-          Mas é a minha vida, a gente sempre dá um jeito... Vou conversar com o meu pai... E também o Lopes não sai perdendo, eu arrumei um convênio,  vai ganhar uma bolsa polpuda no estrangeiro, tudo como ele gosta... Só Feitoria é que fica na mão... O Lopes aqui, puxa, era fundamental, a gente praticamente só tinha ele para dizer alguma coisa que prestasse.
             O pensamento de Rômulo agora estava longe. O vazio da sala avivou-lhe a lembrança de Rosângela. Preocupado, considerou abordar o assunto com Otávio. Mas descartou em seguida a idéia. Levantou-se. Iria  à casa de Romeo. Fosse tudo o mais sem importância. Impediria que ela fosse entregue a uma equipe de assassinos no hospital.
           Otávio falava ao telefone, um celular caríssimo, enquanto Rômulo se preparava para deixar a sala. Mas o outro interceptou-lhe a passagem, imperiosamente, exigindo que ele permanecesse ali. Depois, guardou no bolso o pequenino aparelho.
-          Ela não vai para o hospital.
-          O quê? – Rômulo, incrédulo, encarava Otávio que informava com voz neutra, quase melancólica.
-          Está em casa. Brigou com Romeo que insistia para procurarem auxílio médico no ambulatório da cidade. Ela não quis, de jeito nenhum. Não sabemos porquê. Como ela obviamente não tem idéia dos nossos arranjos, me diga, como explicar essa atitude? Será que quer se matar? – A ligeira pausa que se seguiu não traduzia qualquer acordo quanto à disposição que animava o silêncio dos homens, ambos de pé, na sala. Otávio debruçava-se racionalmente, de modo frio, sobre a questão nova. Retomou o celular. Rômulo, entre o alívio e a desorientação apenas aguardava qualquer fiapo de informação que lhe trouxesse algum esclarecimento a respeito do que se passava com Rosângela. Otávio falava agora, como se repetisse o que estava ouvindo pelo aparelho:
-          Ela tomou um remédio, comeu, está deitada agora. Romeu está com ela, a casa silenciosa e escura. Ela adormeceu. Ele assiste à televisão, na sala. Parece preocupado. Mas pelo jeito ela melhorou um pouco. Não sabemos como será o amanhã – ele guardou o telefone. – Estamos à postos...
-          Como vocês sabem disso? – Rômulo explodiu, indignado. – Há alguém lá, espionando?
               Otávio sorriu, tristemente. Seu semblante era resignado, imaterial:
-     Não pergunte, Rômulo. Somente não pergunte. – deixou-o só, na sala deserta.

   XII
               O quadrado luminoso despejava suas imagens coloridas aos pacotes: compre, faça, leve... Mas o rosto de  Manoel Augusto interceptara o fluxo e agora parecia ter se instalado, monopolizando o espaço da imagem.
                     “ O Clube de Conferências foi um espaço adequado ao seu tempo mas Feitoria cresceu tornando-se um centro regional bastante importante, um pólo de referência no complexo urbano que nos circunda. Temos que levar isso em consideração. Portanto meu governo transformará aquele espaço em uma via de acesso realmente válida à cultura onde funcionará um centro cultural, uma universidade, uma livraria, algumas oficinas de artes e ofícios, uma sala de vídeo...”
-          O senhor é contrário ao termo “Shopping cultural”, com o qual alguns se referem ao projeto?
-          Não... Sim, de certa forma... Depende. No melhor sentido, porque não?
                    A noite crescia. Sozinha na sala, assim tornada gigantesca, Rosângela recebia aquelas imagens, Manoel Augusto falando, revelando, prometendo, o entrevistador amoldando-se à ênfase qualquer que o candidato – para todos os efeitos considerado já eleito – sugeria ser de seu agrado. Ao certificar-se de que o assunto enveredara definitivamente para outros itens, ela desligou o aparelho. Pelo que se  poderia deduzir o programa chegaria às raias da madrugada se o permitissem.
                    E no entanto, pensava ela, se todos os itens fossem tratados como havia sido feito com aquele, referente ao Clube de Conferências, nada do que realmente importasse estaria sendo dito. Pois com toda aquela retórica, o que fora mencionado a respeito do que mais era necessário falar? Nem uma palavra sobre o Lopes! E o que ocorrera com o Lopes era tudo o que ela – e tantos mais – desejariam saber.
                   Rosângela deixou a sala mergulhada na penumbra, acendendo em seguida a luz do quarto. O suor fino projetava-se, o leve tremor envolvendo-a enquanto buscava alguma ternura naquelas cobertas macias. Deteve-se, levantando novamente  para apagar a luz e acender o abajour.
                   O silêncio a impressionava com a sensação de amplidão, de imenso infinito projetando-se através da noite. Em algum lugar Romeo demorava-se. Rosângela não se preocupava, porém. Ele lhe dissera que chegaria tarde pois iria a uma reunião de negócios com seus editores.
                  Seus pensamentos voltaram-se para a lembrança de Rômulo como faziam invariavelmente, semelhando uma dor oculta a qual fingimos ignorar mas que está sempre ali, resistindo a remédios, indiferente a tudo.
                   Porque pensava nele assim? Repetia-se, o mesmo solilóquio revolvendo-se, nas mesmas condições. Não tinha idéia de que ele provavelmente nem mesmo sabia o seu nome, que ele provavelmente ignorava  o fato mesmo de sua existência, provavelmente... ? Exasperava-a que tudo fosse apenas assim, conjecturas. Seu modo de ser detestava lidar com probabilidades puras. Mas havia nela alguma ambigüidade fundamental que a arrastava para aquele abismo da vontade, aquele se por à escuta, aquele desejo de ver, presenciar... Tanto tempo desde que o Lopes viajara... Tanto tempo que o ver se havia transformado em uma reminiscência que ela não conseguia afastar...
                  No entanto aquele resíduo de si mesma, a lembrança dele como de uma realidade que era mais profundamente ela mesma do que aquilo com que tantas vezes se ocupava no cotidiano, até mesmo aquilo estava mesclado, era ambíguo, se misturava com a culpa.
                  Ela era uma mulher casada, como podia abandonar-se assim, ainda que tão somente à incomensurabilidade da imaginação?  Tudo então a incomodava, sentia-se intimamente ferida, marcada. Feitoria inteira lhe era hostil e lhe parecia odiosa. O mundo fechara-se sobre ela e Rosângela estava perdida, soçobrando... A febre retornara, sabia.
                   Teria que finalmente decidir-se a procurar o hospital. Por que aquela idéia a aterrorizava tanto? Sentia-se estúpida, inconsistente. Doença-tratamento, médico-hospital, não era tão simples assim? Porque resistia? Amava Rômulo. Sim, ela amava Rômulo! Mas pertencia a Romeo. Devia amar Romeo, como devia ir ao hospital. Porque  tinha que ser tão complicada, esquisita, problemática daquele jeito atolado que era o seu? Amanhã... Prometeu para si mesma. Amanhã... Oh, não, amanhã tudo estará fechado, atravancado por causa das eleições,  que seriam depois de amanhã mas em Feitoria sempre  parava tudo desde a véspera. Depois da eleição. Isso, depois da eleição procuraria  um médico.
                A febre a constrangia, a tosse, o medo. Algo se soltava, porém, e ela se tornava um pouco cínica, zombeteira, que é que importava, fosse lá o que fosse, ela, o mundo inteiro, fosse lá o que fosse...?
                Rosângela adormeceu. Um pouco mais tarde, Romeo abriu a porta da sala, tendo estacionado o automóvel na garagem e subido as escadinhas do pequeno pátio.
                Entregou-se aos pequenos hábitos de higiene pessoal. Verificou que a mulher dormia e deitou-se ao seu lado desligando o abajour. Gostava de pensar nas coisas assim, na penumbra levemente envolta no luar da noite. A lembrança do ambiente festivo em que estivera antes de chegar em casa se impôs como um prolongamento subjetivo daquelas horas alegres. A mulher com quem havia se encontrado e com quem fizera sexo aquela noite havia sido tão gentil com ele que relembrar tudo o fazia grato e terno, solícito.
                Deu-se conta da presença de Rosângela agitando-se  no sono, ao seu lado. Pousou a mão em sua fronte e sentiu a ardência, o suor. Estava febril, aquela febre baixa, insistente, que tanto a incomodava. Mesclou à preocupação uma irritação nascente. Porque a mulher resistia tanto a procurar auxílio médico? Aquilo era incongruente, sem sentido... Seus pensamento deslizou, voltando a focalizar as cenas de prazer com a mulher sensual  que Gomes, o amigo que costumava oferecer festas “para adultos”,  apresentara tão logo Romeo se havia introduzido no espaço do baile. Casais já estavam envoltos em danças luxuriosas, alguns escapavam em automóveis, rumo a algum dos motéis agrupados na zona de lazer da cidade. Alguma inquietação surgia, agora que ele refletia.
                 Teria ele sido bastante viril? O que a mulher realmente achara do seu jeito, do seu corpo...? Não era mais tão jovem e ela parecia uma escultura viva na flor dos anos... O que diria dele, depois?
                 Rosângela rolou inconsciente, para uma posição quase aninhada na linha do seu braço esquerdo e ele deixou-a ficar, sem querer arriscar despertá-la. Não sentia nenhuma culpa em relação a ela.
                 Divertia-se, mantinha a cabeça relaxada, como qualquer homem devia fazer. Mas Rosângela continuava sendo sua esposa e podia mesmo afirmar que a amava, sim, ela era uma mulher atraente e ele gostava de estar ao seu lado, gostava do seu jeito dócil, com alguma coisa paradoxalmente agreste, esquiva... Mas escapar, desviar, ah, Romeo precisava disso, e, pensava, aquilo não prejudicara Rosângela em nada, afinal, ela jamais saberia de coisa alguma, ele era um marido atencioso, etc. etc.
               Podia tudo então continuar assim, às mil maravilhas, com o único senão do Manoel Augusto existir, ganhar a eleição, etc. etc.  Mas ainda que alijado daquele núcleo decisório de Feitoria, Romeo preservava o círculo de amizades oposicionista para o qual derivara desde o affair com Rosângela e a compulsória renúncia correlata à candidatura pelo partido do senhor Saulo... O sono se apoderou então de tudo, inesperadamente, e a imagem fugaz da mulher  com quem estivera perpassou a noite como uma franja lenta, inconsútil.


                                                                                                         §§§

             Rômulo acordou, sentindo a luz filtrando-se pelas frestas da janela. Era cedo ainda, a aurora levantando o mundo em uma dança suave e prazerosa que ele esposava com a vibração do despertar misturando-se ao apelo do sono. Lavou o rosto, sentindo o vigor costumeiro daquela hora, a mesma energia ativa que sempre o caracterizara. Após o desjejum, guiou até o restaurante.
             Feitoria estava semi-vazia, como num feriado longo. A eleição seria realizada no dia seguinte e como de praxe na cidadezinha, a véspera se consagrava a uma folga geral, os candidatos debatiam na TV, todos já sabiam em quem iriam votar e o partido do senhor Saulo providenciaria broches, camisetas, lanches, transportes, comissões, tudo para que seus eleitores, do centro de Feitoria e dos arredores, pudessem dispor amanhã do maior conforto no seu acesso às urnas.
          Paralelamente a minoria afeita ao discurso da oposição seria convenientemente maltratada na rua. Haveria, para ela, ônibus subitamente muito cheios com  passageiros exibindo comportamento desordenado que ninguém sabia de onde havia surgido tantos, os funcionários do pleito exibiriam rostos sérios, como se esta minoria estivesse agindo dentro de um grau qualquer de anormalidade e o idoso eleitor do Manoel Augusto, vendo tudo isso, menearia a cabeça, sorriria, cismaria um instante, cabisbaixo, depois exibiria a boca no sorriso de um único dente e ponderaria: “Eh, mundo velho... É a natureza... O pobre tem que fazer como lhe mandam, não ficar bancando o esperto...”
            Rômulo estacionou o carro em frente ao restaurante. Ainda era tão cedo que não se via nenhum empregado. Daí a pouco o lugar estaria fervilhando com a atividade de limpeza, arrumação, as cozinheiras entrariam, em pleno alvoroço... Mas agora ele estava só e se sentia bem, no ambiente amplo, refrescante.
          Havia contas e papeis  a organizar. Rômulo sentou-se a uma mesa próxima do balcão do caixa. Entregou-se ao trabalho com afinco mas para sua surpresa entreviu mais alguém adentrando o salão. Era Otávio.
-          E aí, mano? De quanto é  a fortuna?
          Rômulo olhou para ele, meio sem compreender:
-          Otávio? Tão cedo por aqui?
-          Pois é. – ele sorriu, assentando-se. – Estratégia, meu caro. Uma distância relativa do núcleo em ebulição. O comitê central da campanha está fervilhando. Minha casa tem gente saindo pelo ladrão. Daqui a algumas horas haverá o debate decisivo dos candidatos. Claro que o Manoel vai achatar o Rubinho porque, entre outras coisas, o entrevistador vai estigmatizar outros para deixar falar uns. Tudo como sempre, estamos para lá de acostumados, mas é muita correria, muita atividade e há mesmo ansiedade... – Otávio sorriu. – Não é engraçado? Porque é que ficamos ansiosos por algo cujo resultado estamos cansados de saber qual vai ser?
              Havia algo na voz de Otávio que soava como resignação, uma angústia vazia, estranha. Rômulo não conseguia compreendê-lo bem. Logo um ruído explodiu, o pequeno celular assomou às mãos de Otávio.
-          Fala!
              Rômulo jamais poderia esquecer a transição que se apossava da expressão de Otávio. Um rubor assomou, o espanto entrelaçava-se a algo genuíno, a máscara subitamente retirada, só restava a imagem da consternação.
-          Mas isso não é possível! Isso tem que ser recolhido. Este material tem que ser recolhido! – ele repetia, quase gritando. – Agora mesmo! Ligue para o pessoal dos transportes! Mande-os para as bancas! Cada grupo de caminhões para as bancas da sua região. Fala com as secretárias, inventem qualquer desculpa, deixa para amanhã o transporte, diz que vai ser tudo normal...  O quê? Lista? Isso! Boa idéia! Organize a lista  do pessoal das bancas que é partidário nosso! Ligue para eles, mande-os eliminar esse material!
            Foi preciso esperar até que  Otávio interrompesse o fluxo aparentemente interminável de ligações e ordens para que Rômulo pudesse se inteirar do que estava ocorrendo.
-          Um  jornal! Um jornal panfletário! Fizeram circular um jornal nas bancas, aqui em Feitoria, parece que com denúncias sobre irregularidades da administração!
            Um jovem apareceu com um jornal nas mãos. Estendeu-o a Otávio, como se executasse uma tarefa ordenada, retirando-se logo depois. Otávio folheou, consternado.
-          Acusações de assassinato político, obras superfaturadas, prática crônica de nepotismo e favoritismo, manipulação de concursos e cargos públicos... Esse jornal fala de tudo! Um estudo foi feito com o patrocínio de uma instituição estrangeira! Há documentos, provas... Rômulo, vá para casa. É melhor você não se arriscar, podem associar o restaurante com o alvo da  revolta, se houver revolta, porque vamos fazer todo o possível para evitar que esse panfleto continue circulando por aí. Mas é melhor se precaver. Fique em casa.
            Otávio saiu. Rômulo estava tão pasmo quanto o resto de Feitoria.
             As pessoas que haviam recebido o jornal, não um grande número devido ao horário tão matinal, pareciam – elas assim como o senhor Saulo e o seu partido – terem sido pegas de surpresa, terem toda a verdade atirada ao rosto impedindo a farsa tácita, que estavam acostumados a encenar todas as vezes, de se desenvolver com a característica desenvoltura. Era como se o interdito à mentira, devido a revelação incontestável, atingisse os que deviam ser dados como enganados mais do que aqueles que  se davam como enganadores.
            A cidade havia sido posta em cheque com todo o seu meticuloso mecanismo de poder que reservava a cada um o seu lugar – menosprezado, limitado, mas seu. Agora era preciso assumir a responsabilidade por seu próprio destino e Feitoria sentia o peso vergar-lhe o dorso.
            Entrementes o pessoal do partido percorria a cidade e os arredores confiscando bancas, agindo com violência lá onde não encontrava colaboração. O debate  dos candidatos fora misteriosamente cancelado. A estação local, intimamente ligada ao império do senhor Saulo, rodou um quadro de realizações do seu governo e do seu partido. No entanto o estrago estava feito. Acordando de um sono dogmático milenar, à perplexidade seguiu-se a curiosidade e Feitoria disputava agora  os exemplares do jornal subversivo  que lograram atingir o público.
             Em casa, Rômulo procurou comunicar-se com Cristiana. Aquela noite havia sido escolhida para estréia da peça em que ela desempenhava  o papel principal. Naturalmente isto estava no esquema de Manoel Augusto, pois a amizade de Jairo Gonçalvez e do Senhor Saulo seria convenientemente explorada pela mídia local. No entanto, com aquela reviravolta nos acontecimentos Rômulo estava em dúvida quanto a exeqüibilidade do evento.
-          Oi Rômulo. – ela atendeu, no celular. – Olha, estou muito ocupada, há mil detalhes de última hora para acertar...
-          Vai haver a peça, então? Você está sabendo, o jornal subversivo...
-          Rômulo, depois a gente conversa. Vai haver a peça, sim, claro, porque não haveria? Beijo!
          Ela desligou e um pouco da sua agitação, somando-se ao alvoroço dos acontecimentos  finalmente o envolveu. Não sabia o que fazer. Um ímpeto incomum o levou a desejar ver Rosângela e aquela vontade era tão vívida que ele pensou não poder suportá-la. Guiou novamente, ignorando a sugestão de Otávio. Não havia confusão nas esquinas. Uma estranha imobilidade havia tomado conta da cidade que parecia deserta, fantasmagórica... Rômulo se viu estacionar próximo à casa de Rosângela.
        De onde estava podia contemplar o pátio, as escadas que conduziam à porta. A figura pálida de Rosângela assomou. Ela atravessou o pátio debruçando-se sobre a amurada, como quem observa a rua.
           Ficaram assim, ele  espreitando em seu automóvel, ela olhando o sol da manhã na ruazinha deserta. Parecia loucura abordá-la mas ele brincou com a idéia até que viu Romeo aproximar-se. Ele a saudou com um sorriso, parecendo ter acordado agora. Trocaram algumas palavras e Rômulo a viu assim, sorrindo, para logo depois entrar na casa com Romeo. Rômulo sentiu-se, sem saber como, reconfortado. Ela estava bem, ela estava em casa, havia sorrido...
           A necessidade de tê-la não se havia abrandado mas a presença dela parecia tão terna, a impossibilidade de tudo tão manifesta que ele se resignou.

   XIII
      
            Mais tarde,  o encontro com Leda. Ela o esperava no portão. Leda o beijou daquele jeito tão dela, de leve, nos lábios, e Rômulo guiou até o teatro. As luzes de mercúrio principiaram a colorir a noite que se avizinhava. Apesar da estação das chuvas ter chegado, o mormaço envolvia a cidade com seu hálito quente. Havia uma pequena multidão aglomerando-se no teatro, para entrar, como se conformando-se a escoar-se lentamente pelo funil da bilheteria. Havia também populares que se davam por satisfeitos por ficar à porta do teatro vendo a gente bem se exibir em seu elemento.
         Rômulo sentiu uma vibração fina no ambiente. Algo parecia deslocado e franzia as bordas, mas Leda desviou sua atenção.
-          Mas que descaramento! O Rubinho se atreveu a vir! – com efeito, Rômulo divisou a figura do amigo, ladeado por Nélio e algumas outras pessoas que não conhecia. Rubens acenou-lhe com discrição, prudentemente, mantendo-se à distância. Leda, com sua expressão fechada, não deixava dúvidas quanto à reprovação manifesta. Otávio aproximou-se:
-           Como é que estão as coisas?
         Rômulo indagou, impressionado com as marcas de cansaço no rosto do outro.
-          Sob controle. Apreendemos o material. Claro que chegaram a vender alguns exemplares. Mas a quantidade que eliminamos deve ter sido  bem  maior.
            Rômulo não respondeu. Entravam nesse momento no saguão, estendendo os bilhetes ao porteiro. Rômulo então surpreendeu-se novamente. Rosângela estava ali, com Romeo.
-          Mas hoje é o dia dos indesejados! – comentou Leda, sarcástica. Ato contínuo agarrou-se a Rômulo com ares de proprietária. Otávio riu, de maneira característica, como que congratulando-se com Leda por seu modo de agir. Rosângela parecia muito pálida, Rômulo percebeu. “A heroína romântica...” , ele pensou. Logo Romeo e a mulher desapareceram por trás das cortinas, na penumbra em que mergulhava o espaço da platéia. Um burburinho cresceu no saguão. O celular de Otávio soou:
-          Alô! Quê? Mas que abusados! Não dá moleza! Baixe o sarrafo, apreenda tudo! – Voltando-se para Rômulo, explodiu: - Os pilantras vieram panfletar o jornal aqui!
                O redemoinho de pessoas no saguão trouxe Rubens e seu grupo, casualmente, para perto do trio formado por Rômulo, Leda e Otávio.
-          Pilantra! – Otávio afrontou, sem peias. – Estão baixando a porrada no seu pessoalzinho lá na frente! – Ele exclamou, irado, numa demonstração de prepotência que sabia ser do agrado da elite dos seus correligionários que compunham a maioria dos convidados à estréia.
                      Otávio não entendia a presença de Rubens ali, mas este parecia agir com tranqüila determinação. Pelo modo como a declaração belicosa ressoou pela multidão Rômulo aquilatou a extensão da turma de pessoas que acompanhavam Rubens, bem maior do que aquela na qual o julgamento de Otávio devia ter sido suposto. No entanto, logo depois, a entrada de Manoel Augusto ofuscou tudo mais.
                  Rômulo percebeu então que ali, realmente, Rubens era uma ínfima minoria e temeu por sua segurança. Mas agora que havia a ameaça de registro dos fatos  por fontes não restritas ao partido do senhor Saulo, impunha-se um certo respeito à lei que se traduzia na integridade física do candidato da oposição. Rubinho e seu grupo se eclipsou transpondo as cortinas, ao espaço da platéia. Flashes espocavam, todos circundavam Manoel Augusto como numa consagração.

                                                                                                     §§§

               A imensidão do palco estendendo-se à sua frente, em pé como que subsumindo-se ao nicho que a sustinha na abertura cambiante, Cristiana observava. Em cena, sob as luzes, os atores personificavam a austera maestria que a longa prática, as intermináveis horas de ensaio e a mais completa dedicação os havia ensinado.
        E tudo era tão singular...
                                      “ – Pois bem. Estás casado com minha irmã?”
                Ela ouvia nítida e cristalina a voz do Creonte ressoando sobre o vago mundo que se havia criado assim, do nada noturno, ajuntado como fagulhas de interesses em uma platéia de sonho, para depois solver-se de novo, no vazio da cena, quando tudo chegasse ao fim.
       E tudo era também tão vago, recorrente, casual...
                                    “ – Ela consegue de mim tudo o que puder desejar.”
                O Édipo agora tornara a responder. Cristiana, os olhos arregalados sobre a novidade absoluta daquele instante, inspecionava, repentinamente tomada por um espírito de juízo, meticulosamente anotando todos os gestos, as  hesitações, os possíveis erros...
                                  “ – Com o tempo reconhecerás a verdade do que te digo, pois só o tempo revela o homem leal ainda que um só dia seja bastante para desmascarar o traidor...”
                    Ela sentia avolumar-se dentro de si o selvagem ímpeto. Milênios revestiam aquelas simples palavras, aqueles gestos nobres. Agora, daí a poucos segundos ela os encarnaria, seria sua a voz que presentificaria então a eternidade.  O silêncio entre as frases concentrava-se em sua respiração entrecortada.
                             “ – Não, se o que manda é injusto.”
                   Ela não poderia. As pernas tremiam. Cristiana vinha por todo esse tempo enfrentando a estranheza. O universo em que Jairo Gonçalvez a mergulhara era-lhe incompreensível, não tinha nenhum termo de comparação que o delimitasse em relação ao comum dos homens, à sua vida pacata de filha de feirantes do interior. Quisera estar com Rômulo, e chegou a procurá-lo, incógnita, no salão, alguns momentos antes, agora que dominava tão bem a arte das máscaras e dos disfarces. Mas ele estava com Leda.
              Novamente era envolta na estranheza. Vê-lo com Leda, ele, com quem compartilhara tantas vezes o leito e o amor, a levava a um arrebatamento contido, uma percepção sem conteúdo de que as coisas não possuíam um estofo, de que eram simples aparências, imagens projetadas no espelho do espírito, gestos executados para serem repetidos sem vínculo com uma realidade que deveria no entanto existir e que ela havia conhecido no meio das ruas cheias de sol, entre pessoas despretensiosas que olhavam os objetos dependurados nas prateleiras das lojas, nos balcões da feira... Então novamente a transição, ela estava avaliando o momento exato, com faro milimétrico, em que devia entrar em cena, mas... Ah, Como poderia? Ela era tão pequena, havia vivido todo o tempo  tão oculta, o mundo semelhava um ovo no interior do qual seu coração pulsava, ela fechou os olhos, ia sucumbir com os olhares de centenas de pessoas avidamente esperando para devorá-la, não, ia fugir, fugir para dentro dela mesma, abandonar-se, desmaiar...
                    “ – Porque, infelizes, haveis suscitado esta discussão irrefletida?” – sua voz clara, avassaladora, se apoderou da assistência, sua presença majestosa  pousando sobre o supremo silêncio...
                                                                                               §§§

-          Menina, você não sabe do agito!
               Cristiana, exausta mas cheia da exaltação da estréia, preenchia o espaço do camarim com sua emoção, seus gestos largos, imperiosos, os quais se inscreviam gradualmente nela à medida que sua relação com o teatro crescia. Em frente ao espelho, procurava livrar-se da maquiagem pesada. Ainda tinha uma certa esperança de falar com Rômulo. O pequeno ser dentro dela resistia, requisitando amparo, carinho e proteção.
-          Que agito? – perguntou, algo distraída.
-          Houve tumulto na entrada, confronto de políticos! Já pensou? Será que isso vai afetar a crítica?
                  Sem comentários Cristiana trocou de roupa. A outra moça afastou-se e ela se viu solta nos meandros de corredores que ligavam os camarins ao palco. Por uma abertura entreviu a platéia. Quase todos já se haviam retirado. Rômulo não estava ali. Pouco depois o espaço estava praticamente vazio. Ela hesitou, não sabia o que fazer em seguida. Ouviu repentinamente um aplauso seco que a surpreendeu. Voltou-se. Era o Jairo Gonçalvez:
-          Parabéns, Cristiana! Esteve magnífica!
                 Ela sorriu para ele. O diretor, maduro e decidido, tomou-lhe a mão e a levantou como em uma mesura ou uma ligeira paródia de dança. Ficaram assim, naquela pose dúbia, por instantes. Jairo Gonçalvez quebrou o silêncio.
-          Aceita jantar, Senhorita?
          Parecia jocoso e gaiato.  Cristiana o seguiu pensando  que a qualquer momento o restante da equipe se juntaria a eles. Mas enganava-se. Jairo a levou por uma porta lateral e atravessaram juntos um pequeno trecho livre,  sob o ar noturno e fresco.
            Cristiana se absteve de dizer qualquer coisa. Esperou até que o carro estacionou em frente ao hotel. A equipe ainda não havia chegado, isto era evidente, pois os carros que usavam não constavam no espaço do estacionamento. Contudo havia uma certa tensão, o manto escuro da noite parecia estranhamente eletrizado, concentrado à sua volta, o semblante de Jairo debruçava-se por sobre ela enquanto a acompanhava até os elevadores. 
            Conduziu a moça até o quarto onde dormia, só. Assim que a porta se fechou abraçou o corpo de Cristiana como se fosse tragá-la vorazmente. Ela o recebeu atordoada, sem pensar. Deixou-se envolver por ele, por seu ímpeto rouco, por sua voz repetindo que a queria, que a desejava... Depois ele adormeceu e ela, como compensação pelo fato de nada ter sentido durante todo aquele ato, encontrou uma espécie de proteção nos braços dele que se fechavam em torno de suas costas.
            Pousou a cabeça. Antes de se deixar dominar pelo sono algo a fez levantar, sorrateira, caminhando  pelo quarto na semi-escuridão. Procurava uma gramática. Ele teria um livro daquele tipo, por ali? Depois julgou-se pueril, naquela atitude, zanzando pelo quarto e temeu despertá-lo. Deitou, novamente, pousou a cabeça no braço dele, deixando-se dominar pelo sono.
            Mas a manhã ressurgiu muito rápido. Cristiana acordou com um burburinho difuso espalhando-se pelo quarto. Forçou-se a despertar e reassumiu o sentido de quem era e de onde estava.
         Jairo Gonçalvez não se encontrava ali. Moças que faziam  parte da equipe se movimentavam:
-          Acordou, heim? Isso são horas? – alguém lhe falou, com certa ironia. Ninguém lhe perguntou porque estava ali e Cristiana se sentiu estranhamente culpada. Vestiu-se às pressas, deixando o quarto. No corredor, Norah Sanchez em pessoa a viu fechar a porta do  aposento.
-          Mas ainda bem que te encontrei! Imagine, ontem houve uma disputa de políticos na hora da estréia e isso atraiu todas as atenções para o espetáculo, para nós! Menina, você é uma estrela! E o meu marido, novamente, é o maior produtor-diretor-encenador deste país! Vamos, vista-se, há um batalhão de repórteres esperando...
                 Norah Sanchez semelhava um ciclone arrastando tudo e todos à sua passagem no intuito de reunir a equipe no sagüao do hotel, já repleto de jornalistas e fotógrafos. Então Cristiana observou, minutos antes do início da bateria de perguntas e flashes, Norah Sanchez e Jairo Gonçalvez se juntando, postados como um casal graciosamente abraçado.
            Novamente ela sentiu o mesmo vazio, a mesma impressão de irrealidade fugaz, sem fundamento, de tudo.
-    Eles foram feitos um para o outro... – alguém da equipe segredava-lhe ao ouvido. – Não se grila, não. Ela não liga, ele fica com quer der na telha, depois é como se nunca houvesse ocorrido, the show must go on.
                Mãos se levantaram chamando-a, exigindo que Cristiana ocupasse o centro da pequenina cena. Um flash espocou.
-          Cristiana, como você se sente após uma  estréia tão incrível?
     
        XIV
                     Rubinho se elegeu. Seria o  novo prefeito em Feitoria. A cidade reemergia das cinzas naquele amanhecer em que tudo era novo, em que as  pessoas se  prometiam a paz completa, a beatitude suprema.
                     Sentado ali com Nelio, no restaurante vazio, de manhã, junto a Rômulo, Rubens parecia tão calmo e relaxado que ninguém suporia ter ele enfrentado tanta tensão nos dias anteriores e estar, já agora, sob o peso de tantas responsabilidades.
-          Feitoria tem que ser, praticamente, reconstruída. – ele anunciou, com um tom íntimo na voz que demonstrava o quanto se sentia inteiramente entre amigos.
-          É verdade, Rômulo – explicou Nelio – Você não acreditaria no estado em que estão as contas desta cidade.
                 Ficaram em silêncio como que usufruindo aquele instante no qual algo se havia anteposto como se um perigo verdadeiro houvesse sido conjurado. Então uma silhueta se desenhou no espaço e Otávio surgiu entre eles, como uma sombra.
                 Rômulo surpreendeu-se, pensando em que problemas poderiam ocorrer no confronto entre Rubens e o rapaz. Mas Rubens sorriu com expressão sagaz:
-          Como é que é, Otávio? Tudo bem?
                 Otávio sentou-se. Seu semblante exibia também um trunfo oculto, e ele respondeu:
-          Tudo certo, Rubens. Olá, Nélio. E você, surpreso, Rômulo?
                   Ele assentiu, com certa incredulidade.
-          Nós combinamos este encontro, Rômulo. – Rubens afirmou, com expressão conciliadora. – Viemos resolver um assunto, não é Rubens? – Otávio confirmou.
                   Eles principiaram a conversar e Rômulo compreendeu afinal o sentido daquela insólita reunião. Tratava-se do destino do Clube de Conferências.
-          Então é isso. O projeto passa para você, Rubens.
-          Eu aceito. É um bom projeto, meu governo vai lucrar com isso.
                   Rubens se responsabilizava assim pela ampliação do clube. Haveria então na cidade algo como um Shopping Cultural.
-          Shopping Cultural, não. -  apressou-se Rubinho a esclarecer. – O projeto será praticamente mantido na íntegra mas o trataremos mais em termos de um Centro Cultural.
                Ele adotou um tom de autoridade como se os termos encerrassem realmente a verdade das coisas.
-          Quanto ao mais, Rômulo, você sabe, o restaurante...
-          Isso acabou, Otávio. – Rômulo afirmou, convicto. – Como vocês sabem, vou viajar. Pego o avião amanhã. Vou rever a família, a cidade grande...Sua voz ressoou com acento vago, sonhador.
-          Sim, mas você volta. – atalhou Nélio.
-          Eu não sei. – Rômulo respondeu, de um modo que deixava transparecer alguma mágoa. Ficaram mais uma vez em silêncio. Não obstante os aparentes desníveis entre eles, uma compreensão profundamente partilhada parecia ter encontrado lugar.
-          Bem, Rômulo, contamos com isso. – Otávio continuou. – Por um motivo bastante claro. Olhou para os outros, como que instando-os a completar.
-          Você ficará responsável pelo novo Clube de Conferências. Assim, enquanto você viaja as obras prosseguem.  Mas você tem que estar aqui para assumir o seu cargo de mentor do Centro Cultural de feitoria. Não adianta protestar, você simplesmente não vai deixar os seus amigos na mão. – Rubens decretou.
             Rômulo recebeu aquelas palavras com certa comiseração consternada. Estava claro que deveria aceitar, mas seus planos não incluíam nada daquele tipo.
-          E o Lopes?- perguntou.
-          Está adorando o exterior, parece que vai publicar um livro, nem quer lembrar que alguma vez já esteve em Feitoria. E quanto a você, Otávio? – Nélio perguntou, provocando. Na verdade o equilíbrio nada tinha de estável, aqueles homens se reuniam por um motivo determinado, não por uma verdadeira convergência de valores.
-          Eu? Ora, vai ser bom estar na oposição. – desafiou.
-          Nos enfrentaremos, então? – Rubens indagou, com brio.
-          Com certeza. – Otávio respondeu.
-          E por falar nisso – Otávio insinuou, pérfido – Sabe que a mulher do Romeo finalmente resolveu  ir para o hospital?
             Rômulo sobressaltou-se como se o houvessem pilhado em seus pensamentos mais ocultos.
-          Calma, Rômulo, tudo bem – apressou-se o Rubens a declarar. – Nós já enviamos uma boa equipe, gente idônea, de confiança, cem por cento. Pelo que sei ela está mesmo precisando se tratar, mas vai se curar. Está com tuberculose. Mas você sabe que atualmente isso tem cura.
                                                                                                                 §§§         
                   Rômulo instalou-se comodamente na poltrona do avião, esperando pela decolagem.
Leda viera ao aeroporto.
-          Mas como, Rômulo? Você tem um compromisso comigo, não pode viajar assim...
-          Você assumiu um compromisso, Leda, por sua conta e risco, ao que parece. – fizera-lhe bem poder falar enfim o que realmente pensava. Ela suspirou:
-          Mas você concordou! Pensei que quisesse, também.
-          Olha, estou cansado. Vou mesmo viajar. Estarei novamente em feitoria daqui a um mês, se eu resolver aceitar a proposta do Rubens. Conversaremos então.
-          Mas e se você não quiser aceitar?
-          Leda, não se prenda por minha causa. Eu realmente não penso em me casar agora.
         A conversa havia tido lugar uma semana antes, mas ela, mesmo assim, insistira em acompanhá-lo até o aeroporto.  Rômulo a havia deixado  há alguns minutos, acenando, à beira da movimentada plataforma de embarque. Sentia certa simpatia por ela.
       Desejou despedir-se de Cristiana. Mas a troupe de Jairo Gonçalvez partira, Cristiana devidamente contratada, levando a peça para ser encenada em outros palcos. Ele desejara-lhe sucesso, sinceramente
         O avião decolou. Da janela, Rômulo viu Feitoria, um plano imenso de paisagens verdes estendendo-se enquanto o avião ganhava altura. Rômulo pressentiu em certo nível o desenho dos contornos do hospital. Lá estava Rosângela, pensou, enquanto se afastava. Romeo deveria estar com ela enquanto recebia os cuidados necessários, enquanto voltava à vida...  O avião enveredou definitivamente pelo reino das nuvens. “Eu voltarei?”  ele pensou, observando o deslumbrante cenário de luz e azul estendendo-se, infinito, à sua frente.
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